Notas de um diário (2019) – II

VATICANO E O MUNDO

Notas de um diário (2019) – II

E chegámos a 2020! Feliz Ano Novo! Que a vida oferece a todos motivos de alegria e esperança.

E cá prossigo o meu olhar retrospectivo sobre pedacinhos de vida do ano passado. Devo confessar que me fascina a literatura diarista de que o presente texto é exercício incipiente. No fundo, é o continuar a ler o livro deste tempo que nos coube. Sabendo que outros prosseguirão a leitura a seu modo, quando para cada de nós a narrativa se completar.

Volto pois ao meu diário do ano passado, em reencontros sucessivos com o que vivi.

22 de Maio– Quais as possibilidades de paz na Venezuela, a ser expressas num qualquer plano de transição/acomodação política que ultrapasse o actual clima de pré-guerra civil?

Creio que os últimos desenvolvimentos se encaminham um pouco mais para essa hipótese, embora a insensatez humana possa negar oxigénio a este embrião de optimismo. O pior é sempre possível.

Mas imaginem os americanos a braços com duas crises simultâneas, mesmo a sério, Venezuela e Irão, para além de outras maldades que espalham pelo mundo e arredores. Mesmo a grande potência não tem mais braços do que as divindades do panteão hindu, Vishnu e outras.

23 de Maio– NÃO À EUROPA DOS NOSTÁLGICOS! Não à Europa do regresso às nações tradicionais, cujas rivalidades provocaram “só” duas guerras mundiais. Nações cujos líderes ou candidatos a tal respondem hoje às oportunidades de um mundo mais aberto e diverso, mas como? Com reacções xenófobas (a pretexto de defesa da identidade nacional), as mais das vezes com medos instilados, fabricados, exagerados pelo oportunismo do discurso político de uma nova geração de candidatos a iluminados.

Com a subtil mensagem que o seu gesto encerra, o Papa convidou há dias para subirem ao papamobile crianças, filhas de imigrantes, para mostrar a quem não saiba que no Vaticano se tem um outro conceito da verdadeira identidade das nações europeias.

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Regresso à História, pois? NÃO, MUITO OBRIGADO!

Temos é que construir o futuro, melhor do que o presente, o que significa não o elogio do imobilismo, mas exactamente o oposto: uma robusta agenda reformadora. Que, face aos escândalos, mexa com os bancos e a sua gestão; mexa com a classe política e a sua ética; mexa com todas as formas por que se exprime a desigualdade crescente entre classes sociais.

29 de Maio– Tenho-me interessado crescentemente pelo modo como as discussões (as conversas, as trocas de ideias) se processam, impressionado pela generalização do debate público nas televisões, nas rádios e sobretudo nas redes sociais. Toda a gente, de todos os horizontes, fala de tudo. Com o direito inquestionável a exprimir-se, naturalmente.

Ainda bem que o direito à palavra está hoje generalizado. Ainda bem que os que estavam calados ontem podem falar hoje.

Ora, tal fenómeno deixa-me extremamente curioso! Como se formam as opiniões? Dou comigo a assistir, por exemplo, pela televisão ou pela Internet, a um debate sobre qualquer tema. E vejo pessoas com igual convicção, aparentemente da mesma idade e trajadas de modo semelhante, defender posições diametralmente opostas. Porquê?

E de cada conversa ou discussão a que assisto, ficam-me sempre por responder duas questões:

A) Como é que cada um dos intervenientes formou a sua opinião sobre aquele tópico preciso, ou qualquer outro?

Sabemos que múltiplos factores nos condicionam no nosso desenvolvimento como pessoas, desde a origem social ao género, à pertença religiosa ou étnica, o nível académico, etc., etc., mas… e é tudo? Somos o somatório disso… e só? Onde está a nossa liberdade?

A questão da nossa liberdade coloca-se-hoje de forma premente, com a manipulação da informação.

B) Por outro lado, alguém modifica o seu ponto de vista depois da troca de argumentos, ou cada um sai como entrou, detentor da “sua” verdade? Cada interveniente ouviu realmente o outro, ou ouviu-se sobretudo si próprio?

Alguém aceita reconhecer a melhor fundamentação de algum (pelo menos) dos argumentos do outro, dispondo-se a modificar a sua posição em função dele?

4 de Junho– Mas volto inevitavelmente à notícia de ontem, na nossa terra. Um café triste, hoje, pois, pelo desaparecimento de Agustina. Sabíamo-la em rápido declínio físico, de idade já muito avançada. Mas para quem teve a oportunidade de a conhecer pessoalmente (e esse foi também o meu caso), o que a distinguia – para além da obra prodigiosa, naturalmente – era o sentido da ironia que se traduzia no brilho especial do seu olhar.

As expressões convencionais de pesar vêm à superfície e quase reproduzo o que dirão esta manhã os jornais, nas suas primeiras páginas. Aliás, a RTP apresentou ontem mesmo um excelente documentário do percurso literário da escritora.

Inteligência, clarividência mesmo em ler o mundo como ninguém, e a ironia do olhar – eis como eu ousaria descrever Agustina, essa permanente operária da pena, mulher excepcional que viveu para a literatura, como se de uma religião se tratasse.

De resto, no escritor é mesmo isso, e só isso é que importa: a obra que produz.

Os longos momentos de solidão a que a escrita obriga, horas e dias e semanas e meses vivendo sozinho no seu universo muito próprio, de onde há-de surgir o livro concluído.

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Conheci Agustina Bessa-Luís em meados dos anos oitenta do século passado, em Bordéus, quando ali exercia as funções de Cônsul Geral. Num “castelo” em Pauillac, no Médoc, a região por excelência do vinho de Bordéus, recebia eu, com o casal proprietário da famosa marca Lynch Bages, os bons amigos Teresa e Jean-Michel Cazes – graças à sua generosidade – mais de uma dezena de escritores portugueses.

Tinham ido de Portugal para participar na Semana Cultural Portuguesa que se viria a tornar um evento regular importante. E ali estavam Saramago, Cardoso Pires, Lobo Antunes, Sofia de Mello Breyner, Lídia Jorge e Agustina, entre outros.

Quando estava já toda a gente sentada na bonita cave do castelo, com mesas artisticamente dispostas entre as pipas do saboroso vinho, levantei-me e dirigi palavras de acolhimento aos escritores presentes. E citei-os pelos nomes, consciente de que nos grandes nomes da Literatura habitam frequentemente também grandes egos.

Não vendo Agustina, não a citei. A escritora chegou ligeiramente atrasada, mas a tempo de perceber que não fora mencionada. A anfitriã alertou-me para o lapso. Concluindo o pequeno discurso, dirigi-me imediatamente à mesa onde estava Agustina, para a saudar pessoalmente.

«– Que honra em tê-la connosco, Agustina!», disse eu, com o meu melhor sorriso.

A escritora interrompeu-me secamente:

«– Não parece!», disse, com severidade na voz.

Acontece que a situações que poderiam ser embaraçosas para outros respondo invariavelmente com ironia e bom humor. Não sei porque reajo assim, mas é assim e não de outra maneira. Serão provavelmente e só duas maneiras de ultrapassar o mal-entendido…

«– Vou provar-lhe, Agustina, que me sinto particularmente ligado à sua obra», disse eu enigmaticamente.

E acompanhando-a ao aeroporto dias depois, levei comigo uma pequena mala onde havia colocado quinze livros da sua autoria que faziam já parte da minha biblioteca.

«– A sua punição é autografá-los!», disse eu, rindo, ao abrir a mala.

E Agustina, sensibilizada, autografou-os todos, com uma simpática dedicatória em cada um.

(Continua na edição de 17 de Janeiro)

Carlos Frota

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