Notas de um diário (2019) – I
O ano finda. E no decorrer dos dias, são notas breves, postas no papel ao sabor dos horas que passam. São pensamentos agarrados ao dia-a-dia, mas já a tentarem soltar-se, para me ajudarem a interpretar uma realidade, para além da realidade.
Compreender o tempo que me tem sido dado viver constitui objecto de uma “pequenina” obsessão da minha parte.
E usar as chaves das ciências sociais para o fazer, incipiente aprendiz que eu seja em todas essas disciplinas – é um verdadeiro fascínio. Fora dos discursos tardios de justificação nostálgica, mesmo do passado político do nosso país que tanto (de)formou a minha geração; ou do seu oposto, a crítica cega… que só a cegueira ideológica, de sentido contrário, garante ou justifica.
A “démarche” académica tem o mérito da objectividade intelectual. E está nos antípodas da pseudo-ciência panfletária.
Alguém se admirava, há alguns anos atrás, de algumas interrogações que me colocava, sobre respostas que fui passivamente aceitando do passado e assumindo como minhas. Um tal questionar “da História” (ou de certo tipo de narrativa histórica) pareceu-lhe quase sacrílego. E eu tive que dizer, respeitosamente, a esse meu interlocutor, que dogmas para mim só os da religião, e mesmo esses livremente aceites, pela minha fé…
É que há naturalmente, no meu percurso, aceite de forma madura, consciente e voluntária, o grande desafio da Fé…
As notas que se seguem são realmente extraídas de um diário e são realmente a tentativa de compreender o tempo presente, neste caso o ano prestes a findar.
Neste contexto se inscrevem também as visitas que o Papa Francisco fez ao estrangeiro em 2019. A algumas delas fiz já referência breve na crónica anterior. É que as deslocações pastorais do Santo Padre à sua paróquia universal (que é de facto o mundo todo) inscrevem-se num tempo histórico devidamente interpretado pelo Pontífice, numa perspectiva evangélica.
1 de Janeiro– Para recordar o óbvio, o mundo nunca pára. E muito menos ENCERRA PARA BALANÇO, como acontece anualmente com as lojas do nosso bairro.
Mas devia parar um pouco, regularmente. Se (ironizo eu), os sucessivos Secretários-gerais das Nações Unidas tivessem poder real sobre os Estados – que oportuno seria se decretassem, por exemplo, uma semana por ano de “encerramento do mundo” para… fazer contas à vida!
Estou a imaginar (a delirar) observando a trégua imposta em todas as guerras. E Presidentes e Primeiros-Ministros, Ministros e Secretários de Estado dos Governos do mundo, entrarem então em “retiro espiritual” nos templos das respectivas religiões, acompanhando a sua progressão interior com ritos regulares de purificação e expiação (com água sagrada de algum rio próximo e não com néctar do tipo “Veuve Clicquot”, obviamente!).
15 de Janeiro– Perante o fenómeno universal da corrupção bem no interior de muitos Governos nacionais ou locais, diria mesmo que, em certos casos, só a clausura compulsiva seria recomendada, uma espécie de prisão domiciliária regular com pulseira electrónica – necessidade abundantemente confirmada pelo modo como terminam os mandatos longos de alguns políticos, com passagem directa à hospitalidade gratuita dos calabouços da polícia mais próxima. Isto, antecedido ou seguido muitas vezes por incursões oportunas das autoridades às muitas residências privadas dos incriminados, onde encontram, por mero acaso, sacos de dinheiro “ocultos” debaixo da cama ou em secretíssimos armários!?
23 a 27 de Janeiro– O Papa Francisco visitou o Panamá, por vários dias por ocasião da Jornada Mundial da Juventude 2019; uma extraordinária manifestação de fé dos jovens de todo o mundo.
3 a 5 de Fevereiro– O Papa Francisco visitou os Emirados Árabes Unidos. Em Junho de 2016 o Papa recebeu e aceitou um convite para visitar os Emirados Árabes Unidos e participar no Encontro Inter-religioso Internacional sobre “Fraternidade Humana” em Abu Dhabi. Como já referi na crónica anterior, a Declaração de Abu Dhabi constitui um dos marcos históricos do pontificado de Francisco.
3 de Fevereiro– Da Argélia ao Sudão de hoje, não esquecendo o Brasil e a Malásia, incluindo as “honestas(?)” democracias ocidentais (o afastamento de François Fillon das eleições presidenciais francesas, para dar um só exemplo), o fenómeno é sempre o mesmo. Por essa via atestando, pela diversidade geográfica das ocorrências que o monopólio do mal não é detido por ninguém em particular.
O bicho homem não tem cor, nem etnia, nem religião, nem qualquer outro sinal distintivo. É igual em toda a parte. Mas, enfim, deliro, tão ousada e provocadora é esta minha alegoria para um mundo melhor!
30 a 31 de Março– Visita de Francisco a Marrocos. Reafirmação da amizade entre cristãos católicos e muçulmanos.
5 a 7 de Maio– Visita pontifícia à Bulgária e à Macedónia do Norte. para reafirmar a necessidade imperiosa da paz reconciliação.
8 de Maio– A pobre mas esperançada Asia Bibi, cristã, recém-liberta de anos de prisão e da iminência de ser executada, lá foge finalmente do seu Paquistão natal para os ares mais saudáveis do Canadá, onde o exercício a sua fé não é crime!
Entretanto, os residentes de Trípoli, na Líbia, acordam para mais um dia incerto, na capital bombardeada de um país em guerra. E o seu destino será decidido noutras capitais do mundo, onde se desenham e redesenham os mapas de novas e velhas influências.
Continua a morrer-se em Idlib, nessa interminável guerra síria, cujo termo ninguém prevê. Vota-se na África do Sul, apostando-se num presente e num futuro melhores. Procura-se comida em lojas de prateleiras vazias, nos bairros populares de Caracas.
9 de Maio– Penso ainda nas notícias de ontem e só leio preocupação e ansiedade, pela quase submersão da Europa institucional e política nas sucessivas vagas dos novos e velhos problemas. Mormente os da divisão entre países e regiões. E as fracturas exploraras pelo oportunismo político, com as cores dos vários populismos. A que se soma a arrogância da América trumpiana, insultuosa para com os seus parceiros e amigos históricos.
10 de Maio– «A Europa ou se reforma ou morre», diz Macron. Atento ao que vai acontecendo, Lapalisse não diria melhor!
Mas claro que estes apelos são importantes, clamando por lideranças decididas, nos diversos palcos políticos e sociais, onde o futuro do Velho Continente se vai definir. Daí que seja fundamental a criteriosa selecção da equipa que vai suceder ao executivo de Jean-Claude Junker, à frente da Comissão Europeia.
Num período já pós-Merkel e pós-Brexit, e com uma extrema-direita muito mais assertiva (as eleições para o PE, daqui a dias, dirão quanto), é uma Europa já diferente, eventualmente mais vulnerável, que terá que fazer as escolhas decisivas no plano estratégico.
Uma Europa mais solitária, num mundo onde cada vez mais se tem que estar atento às parcerias que, sectorialmente, servem os interesses europeus. As parcerias históricas quase caducaram. O mundo mudou. É que a vitória eleitoral de Trump teve efeitos cataclísmicos e representou o despertar, sem recuo, de um sonho róseo, com que os cidadãos europeus foram alimentando a chamada amizade euro-atlântica.
O sonho de que a comunidade de valores, em caso de dificuldades, se sobrepõe à divergência de interesses. Isso já não é verdade. Prova-o todos os dias o Presidente americano, que instituiu o mais brutal cinismo negocial como modo “normal” de convivência internacional.
Claro que Trump não inventou nada de novo. Mas o que fez foi despir a realidade, para usar a imagem do grande Eça, “do manto diáfano da fantasia”. E esse despir foi tão brutal que mais pareceu violação! Ou estupro, para ser ainda mais sincero.
A equipa de Trump continua a fazer crescer a tensão sobre o Irão, apostando em duas opções radicais alternativas: ou a rendição incondicional em pretensa renegociação do acordo nuclear, ou a mudança de regime.
Pasma-me o abuso com que se ameaça. Nada se aprendeu sobre o Iraque. Sobre a desastrosa invasão. E suas sequelas humanas, sociais, mesmo económicas!
14 de Maio– O desenrolar dos últimos acontecimentos em Cartum acompanharam-me no adormecer tardio e no despertar cedo, nesta manhã (rara) de Sol.
Pois ao mesmo tempo que se anunciava progresso nas negociações entre militares e civis, uma carga dos soldados na rua (por reacção à morte de um dos seus, disse um porta-voz da hierarquia ) fez várias vítimas civis. Consequências? Uma primeira, e óbvia: o alargar do fosso de desconfiança entre os dois lados, o que vem dificultar ainda mais o final do percurso negocial.
Nesta longuíssima prova de força entre sudaneses dos dois lados da barricada tem-se a crescente percepção de que os militares jogam no cansaço dos manifestantes, enquanto estes surpreendentemente endurecem a sua resistência, não se sabe por quanto tempo…
Tenta-me o pensamento simples de que quem detém a força leva sempre a melhor. Mas sou prudente: as sociedades são complexas. Compreendo isso cada vez melhor, à medida em que vou ficando mais lúcido (LÚCIDO, pois que palavra esperavam, hein?).
As sociedades são complexas, dizia. E, em contextos muito específicos, os actores políticos principais podem influenciar o curso dos acontecimentos, de modo imprevisto, em cada momento.
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Impressionou-me ontem, negativamente (claro!) e uma vez mais, o tom displicente com que Trump fala dos “seus” ganhos, para já, na disputa comercial com a China. Quando toda a gente de bom senso sublinha que não haverá vencedores nesta “guerra”. Trump garantiu que a América está já a ganhar milhões com as tarifas. E que ele está a gostar imenso («I love this situation», afirmou) da posição de vantagem em que acredita estar. E refere alegremente a possibilidade de empresas americanas saírem da China, em busca de mercados mais competitivos. No que é contraditado, aliás, pelos próprios empresários seus compatriotas, que lhe apontam as vantagens únicas de um mercado único, desde logo pela sua dimensão.
Não discuto aqui o valor dos argumentos de parte a parte, no interior das negociações, porque não conheço os detalhes. Mas choca-me a desfaçatez do discurso de Trump, a sua prosápia, a sua arrogância.
A tal atitude corresponde, do lado chinês, a cortesia, a reserva. Só por agora? O que acha Trump e a equipa de ignorantes do mundo exterior que o “aconselha”?
O abecedário do líder de hoje, das empresas ou dos Governos, passa por interpretar os interlocutores no seu (deles) contexto cultural próprio. Não só por cortesia. Não só por diplomacia. Mas para compreenderem o sentido e alcance das posições que assumem.
Como podemos esperar entendimentos gerais no futuro, entre esses dois grandes países de que depende a paz no mundo, se à subtileza e visão de um lado corresponde, do outro, a incapacidade e a ignorância, tudo embrulhado numa imensa auto-satisfação pacóvia?
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O longo processo das eleições na Índia está a chegar ao fim. E no centro do debate situa-se também a questão da identidade hindu, num país multicultural e multi-religioso.
O sentido de realismo faz com que, depois dos excessos verbais das campanhas eleitorais, para angariar votos, a vida continua. Só que certos líderes parece não quererem compreender que se semeiam ventos, cedo ou tarde colhem tempestades.
Mas quem vai afinal governar a seguir? O experimentado Modi ou o jovem Rahoul Gandhi? Será que se confirma a reeleição do actual primeiro-ministro? Veremos a 23, daqui a dias.
16 de Maio– Na sua maneira habitual e simbólica, o Papa Francisco enviou uma mensagem subtil ontem a quem anda à procura, febrilmente, da Identidade Europeia.
Essa identidade cristã que se vai cozinhando muito mais nos comícios políticos do que à sombra dos templos protestantes e das igrejas católicas.
Como? Que mensagem? Pois fazendo-se passear Francisco, no seu papamóvel, rodeado de crianças imigrantes, na Praça de São Pedro. É o voto de Papa nos construtores de pontes. É o seu voto CONTRA os construtores de muros. Imagem gasta, mas compreendida perfeitamente por construtores civis e especuladores de imobiliário.
Alguém terá visto as imagens, por exemplo, dos gabinetes do Governo nacional europeu mais próximo do Vaticano? Ou terão fechado as cortinas à pressa, por causa do… Sol?
Que a Europa está numa encruzilhada, todos o sentimos. Mas o que mais preocupa não é a demagogia dos demagogos, o populismo dos tribunos da plebe. O que mais preocupa é a falta de memória histórica das jovens gerações. Dos que pensam que o mundo começou com eles e nada têm a aprender com o passado.
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Imaginem o que fui encontrar, por mero acaso, ontem, na gigantesca videoteca universal da YouTube!?
Algo que não representa qualquer novidade literária para os razoavelmente informados das novidades editoriais lusas, mas que foi um achado para este português-de-torna-viagem: a apresentação, já em 2013, do livro do professor Fernando Rosas sobre “Salazar e o Poder”, por José Pacheco Pereira, com uma brilhante exposição do autor. Já lá vão seis anos, mas a verdade é que ainda não li o livro!
18 de Maio– Fim de semana pacato nesta bela cidade chinesa. Pela televisão seguiu-se a visita do chefe do Governo de Macau (aqui chama-se Chefe do Executivo) a Portugal. Amizade, carinho, cooperação, tudo bons sinais para quem aqui vive e presa ainda mais, se possível, o bom entendimento luso-chinês.
Vinte anos se completam dentro de seis meses sobre a transferência do exercício da soberania de Macau para a China.
Vinte anos já! – e belisco-me disfarçadamente, para me convencer que é mesmo verdade!
(Continua na próxima edição)
Carlos Frota