A solidão provisória de Adão

VATICANO E O MUNDO

A solidão provisória de Adão

Na alegoria bíblica, Deus Criador não deixou Adão sem companhia por muito tempo, porque não era bom que ele estivesse sozinho. Por isso, criou Eva, da costela de Adão adormecido. E aqui temos, por assim dizer, o acto fundador da sociedade humana.

Dizia eu a uma amiga, há dias, que em criança tive relutância em estragar os carrinhos que me davam – para ver lá dentro, como eram feitos, o que os fazia andar. E não os “estragava” precisamente porque, mais do que tudo, gostava de os ver andar, tomar velocidade, atravessar paisagens, tudo na minha imaginação, claro – já imbuído certamente do sentido da viajem.

Mas quando percebi que havia um brinquedo maior, a SOCIEDADE (ou esta nossa maneira de viver juntos, este nosso fatalismo de não nos isolarmos dos outros, para não nos alienarmos de nós próprios), corpo complexo com suas regras, suas instituições, seus dogmas, suas verdades, suas mentiras, nunca mais parei de ser curioso.

Sociedade: o todo que explica a parte, o todo que oprime a parte, o todo que realiza e liberta a parte. Que mistério! Como somos humanos? Como nos realizamos como pessoas? Dissolvendo-nos na sociedade? Protegendo-nos da sociedade?

O tema é fascinante e tem implicações múltiplas que nos acompanham durante toda a vida, definindo-nos mesmo, conclui-se facilmente, como pessoas.

Do eremita ao artista que arrasta multidões, do monge na sua cela ao político em permanente banho de multidão, onde está o cerne do “humano”?

O POVO ELEITO… E OS OUTROS

A abordagem inicial do tema “sociedade” foi-me dada certamente pelos ensinamentos da Igreja, primeiro, quando criança, na catequese; e depois, adolescente, nas aulas de religião e moral, no liceu.

Havia desde logo a realidade do “povo eleito”, esse ser colectivo do Antigo Testamento, com quem Deus celebrara um pacto especial de amizade, investindo-o na missão de honrar, glorificar e difundir o Seu Nome. Esse povo de sacerdotes, que estruturando a sua vida colectiva em torno do Templo, foi organizando a sociedade, tendo o culto de Deus como centro.

Depois, já nos Evangelhos, toda a mensagem de Jesus é um discurso virado para o Outro, os outros, fazendo com que cada pessoa saia da sua concha e actue para bem da comunidade. O amor do próximo é naturalmente a mais forte indicação do vínculo que Jesus veio defender, para que nos unamos uns aos outros.

Claro que o estudo da História levou-me entretanto a ver também, com alguma distância, como é que os povos, as sociedades, se relacionam com outros povos, com outras sociedades, na paz e na guerra, na amizade e no conflito.

De forma mais adulta e deliberada, todavia, fui procurar a resposta ao grande mistério da sociedade quando me sentei pela primeira vez, razoavelmente curioso, nas aulas de Direito, nos anfiteatros gélidos dos Gerais, da Universidade de Coimbra. Mas em vez do que me interessava (desvendar o segredo desta espécie de contínua servidão/libertação, de termos de viver uns com os outros), deparei-me com lições monótonas, sempre doutorais pois claro, onde encontrei apenas normas (leis, decretos, regulamentos) – menos quem os fazia e por que os fazia. Era como se me quisessem explicar toda a vida da Igreja, na riqueza das suas manifestações duas vezes milenares, sob o prisma exclusivo do Direito Canónico!

AS LEIS E A VIDA

Refeito desse meu pesadelo académico, continuei pela vida a indagar o porquê das normas, de todas as normas, interessado em compreender a vida curta de muitas, principalmente pela rapidez com que começaram a mudar os interesses, os valores, as ideias, as pessoas, a SOCIEDADE! E voltei a minha atenção para os interesses, os valores, as ideias e as pessoas. No provisório de tudo.

E voltei a marcar encontro com a sociedade (como objecto de interesse intelectual, naturalmente) quando comecei a interligar actores políticos e actores económicos, sociais no sentido associativo, culturais, etc. etc., numa visão de conjunto que só alguma abordagem das ciências sociais possibilitou.

NAQUELE TEMPO…

Mas adiantei-me e tenho que voltar atrás. O Legislador, no meu tempo de estudante, era um deus desconhecido. Vivia numa espécie de céu privado, de que só muito tarde conheci a morada terrena. Era para os lados de São Bento à Estrela, em Lisboa!

Os “Decretadores” eram gente da sua família espiritual alargada, eles também imperceptíveis; uns senhores de fato escuro que se sentavam em gabinetes sombrios, onde mal entrava a luz do dia. Confabulavam entre si. E alguns tomavam notas. E tudo o que resultava de tais conversas e de tais escritos (percebi mais tarde) tinha afinal a ver CONNOSCO!

Regulamentadores, esses, eram uma nuvem de insectos vorazes de sangue inocente! Nestas incluíam-se os proprietários de isqueiros, como lembrava um amigo meu, há dias, ironizando aspectos ridículos do antigo regime português. E chegou 1974.

Precisei de “ver” a Assembleia Constituinte a funcionar (não vi, estava fora, mas recompus posteriormente o quadro) para compreender que era ali que se encontravam (para um combate de ideias e às vezes mais que isso…) pessoas comuns, discutindo a direcção do futuro de todos. E dessas conversas e do modo como foram sintetizadas, e votadas, resultaram “papéis” escritos, a que se chamou Constituição.

E O LEGISLADOR É O MEU VIZINHO!

E o voto final selou um contrato entre poder e sociedade: poder independentemente dos sucessivos titulares; e sociedade, para além daquele momento.

Os legisladores eram afinal gente comum, vizinhos do mesmo prédio, de fato e gravata, de saias ou calças, de jeans ou indumentária mais formal.

Simplificando enfim, e necessariamente caricaturando, as aulas práticas da disciplina de Direito Constitucional ou Político, cujo exame final havia concluído muitos anos antes, essas “aulas práticas” fi-las realmente a ver nascer e a consolidar-se uma nova ordem política perante os meus olhos. E entre os políticos que politizavam, os jornalistas que escreviam, os músicos que compunham, os intelectuais que debatiam, os militantes que militavam, etc. e tal, fui confirmando o óbvio…

…O CENTRO DE TUDO É O HOMEM

…não o homem abstracto a que se chama “humanidade”, mas o homem concreto, mesmo sem nome, mesmo sem rosto, aquele HOMEM, esta MULHER. E a partir daí nunca mais abandonei o exercício de tentar apanhar os “flashes” de uma realidade complexa e, como nas peças de um puzzle, tentar ver pouco a pouco a paisagem global – num exercício difícil, pois a paisagem muda sempre!

A minha conclusão foi: QUEM NÃO MUDA É O HOMEM!

Até as correntes de pensamento que quiseram fazer dele UM HOMEM NOVO acabaram por reencontrar o homem velho, o HOMEM DE SEMPRE… E o Homem de sempre é aquele que, de arco e flecha, a cavalo ou de automóvel, usando o tambor ou o telefone móvel, tem diante de si, continuamente, as opções fundamentais do BEM e do MAL. Que nega o PECADO como ideia absurda, limitadora da sua LIBERDADE, mas que o comete na mesma, contra a sua dignidade, contra a dignidade dos outros e hoje e cada vez mais contra a dignidade da Terra, da Natureza.

As próprias ideologias não escapam e explicam-se mesmo, por essa tensão ética entre o bem de poucos e o bem do maior número. Mas esse é outro debate!

Carlos Frota

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