Os meus óculos de ver o mundo...

VATICANO E O MUNDO

Os meus óculos de ver o mundo…

Todos temos óculos especiais de ver o mundo. Ou o pensamento de algum filósofo que nos marcou. Ou a atracção pelo progresso científico. Ou o simples sentirmo-nos ao lado dos outros, numa aventura colectiva de que desconhecemos, apesar de tudo, a direcção e o significado. Ou pela adesão voluntária e livre a uma religião.

E entre as grandes religiões, o Cristianismo contém uma originalidade suprema, a do Deus encarnado. De um Deus que marcou um encontro connosco aqui na terra, antes do acolhimento paternal definitivo.

Bem sabemos também, no decurso dos anos, que no capítulo das escolhas fundamentais cada um tem uma história pessoal para contar. A verdade que cada um de nós professa entrou subitamente, ou com maior probabilidade, sub-repticiamente, nas nossas vidas, por caminhos e momentos próprios.

E cada um é livre de contar ou não a sua verdade. Mas mais importante do que contá-la a outros, é essencial percebermos que esses são os nossos óculos de ver o mundo. E que tal visão atinge tudo, informa tudo, condiciona tudo, ilumina tudo.

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Os óculos especiais de o cristão ver o mundo concentram-no na figura de Jesus. Ele é o modelo. Nas Suas palavras. Nos Seus exemplos. No Seu testemunho. No Seu tempo. E nos Evangelhos, onde quase tudo está contido.

O tempo de Jesus não foi naturalmente o nosso tempo. Mas como em qualquer época da História, foi um tempo de tribulações e de esperança, de inquietude e mudança, de conflitos e de paz, de desafios individuais e colectivos. Onde nomeadamente o factor social e político esteve presente, e muito, pela ocupação romana da Palestina. Onde também a conflitualidade étnica e tribal exerceu poderosa influência, com o povo eleito acossado por inimigos, e com guerras e alianças com os seus vizinhos da Palestina, ao sabor das contingências políticas de cada momento. E onde o elemento económico não foi despiciendo, se nos lembrarmos da carga de impostos lançados pelo ocupante romano sobre o povo ocupado. Um dos apóstolos, Mateus era, como se sabe, cobrador de impostos…

Olhar para o nosso tempo, viver o nosso tempo, como Jesus viveu e olhou para o Seu, é o grande desafio, lançado a cada um de nós.

Ora, olhar o mundo, para o cristão, exige-lhe pôr os óculos da espiritualidade. Da sua espiritualidade. Mas que recuo espiritual?

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A missa e as outras práticas religiosas da tradição cristã católica são modos de colocar a vida toda em perspectiva. E porque é a vida toda, não queria restringir-me aqui apenas ao caminho que cada um percorre no interior de si, mas também ao modo de se sair de si e de se ver o mundo, como acto de vida e como acto de fé.

Essa plataforma de observação “sui generis”, que é a espiritualidade cristã, é muito importante para quem – como eu – sente especial atracção em analisar a vida da sociedade internacional, numa espécie de abraço largo, de quem gosta de ver como as sociedades se organizam ou desorganizam, no afirmar das suas solidariedades ou na gestão das suas fracturas.

O primeiro pensamento que me ocorre aqui é o de que não se pode sair dessa experiência de Igreja (concretamente o participar na Missa, com tudo o que tal implica), sem um sentimento de esperança renovada, na capacidade de o ser humano, cada mulher, cada homem, fazer o bem. E porquê? Porque essa capacidade está inscrita em cada um de nós, como selo deixado pelo divino. E que contraria a fatalidade do mal. É essa a nossa Fé em Jesus Cristo.

Segunda ideia importante é a de que se o mal colectivo se organiza, o bem colectivo tem que se organizar também. Não é afinal a própria Igreja essa tentativa colectiva, bimilenar, bem sucedida, de organização do bem, mesmo que com todas as falhas e vulnerabilidades que se lhe podem assacar?

Olho para trás, para tudo o que sei, por exemplo, do papel central da Igreja na construção da civilização ocidental e europeia e quedo-me pensando. E penso na valorização da pessoa humana, pelo exercício persistente da solidariedade, através das ordens religiosas, por exemplo; e na difusão das ideias pela acção educadora das mesmas e de outras comunidades.

Este tema, sedutor entre todos, da identidade cristã da Europa, está hoje na ordem do dia, dados os desafios do tempo presente.

ÓCULOS DE VER O MUNDO

Como é que o cristão lê o mundo?

Quem segue diariamente – e todos o fazemos, de forma mais ou menos interessada – o que vai acontecendo pelo mundo, tem a percepção de que, de repente, como que se rompe o contrato social, no interior de certa comunidade, de certo país, e que as forças ou interesses em presença quebram a situação de equilíbrio e entram em rota de colisão. Normalmente a conflitualidade surge no interior do mundo do trabalho, onde empresários e trabalhadores extremam posições, em pontos essenciais da relação laboral, tendo como pano de fundo, sempre ou quase sempre, as perspectivas discordantes sobre a evolução da economia.

A EQUAÇÃO SOCIAL…

…é, aparentemente pelo menos, de uma enorme simplicidade: os trabalhadores reivindicam aumentos salariais, justificando-os pela insuficiência dos níveis de remuneração que auferem. Ou porque a inflacção foi diminuindo o poder de compra, ou porque os empresários se “esqueceram” de partilhar os lucros não apenas pelos accionistas, mas também, de forma minimamente equitativa, pelos trabalhadores.

Mas, muitas vezes, a ruptura social é atribuível aos próprios Governos pela inoportunidade de políticas económicas e financeiras que ferem interesses básicos dos cidadãos, desde o aumento inconsiderado do preço de bens de primeira necessidade, que pessoas de recursos mais baixos acham intoleráveis, até uma fiscalidade abusiva, que pune os mais pobres e premeia os mais ricos.

E assim, mais recentemente, do Equador ao Iraque, do Líbano a vários outros países, de repente a paz social é posta em causa, multidões saem às ruas, e nem sempre é fácil reconduzir os protagonistas ao necessário diálogo e ao compromisso que qualquer solução exige.

Sobre todas estas questões tem Igreja Católica, como se sabe, um corpo estruturado de doutrina social, desde o documento fundador, a encíclica “Rerum Novarum”, de 1891, do Papa Leão XIII.

PAZ E GUERRA ENTRE AS NAÇÕES

Também no plano das relações entre os Governos das nações, o cristão tem uma forma peculiar de olhar essa realidade complexa. Se no plano interno, o cristão sabe o que é justo e injusto, moral e imoral, no modo como empresários e trabalhadores, mas também outros actores sociais, desempenham as suas responsabilidades, também no plano internacional o cristão percebe que relações entre Estados desprovidas de ética, de valores, não só é fonte de injustiças como, mais cedo ou mais tarde, fonte inevitável de conflitos os mais graves.

Cristo não foi o fundador de uma ideologia, mas de um modo de viver no interior de cada um de nós, com os nossos vizinhos e com as outras nações. E em todos esses domínios Cristo é o mestre da teimosia do Bem.

Carlos Frota

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