MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 20

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 20

As manhas e patifarias de Sebastião

Por altura de 1610, os mogóis, em crescente ascendente, exerciam total controlo sobre Orissa e Bengala e contemplavam a conquista do reino de Balua, nas cercanias de Sundiva e das fronteiras de Arracão, facto que faria soar o alerta nas hostes de Sebastião Gonçalves Tibau. Apressou-se o aventureiro a fazer um acordo com o rei de Arracão para, juntos, defenderem aquele reino, e como parte do contrato entregou a viúva de Anaporam ao governador de Chatigão. Min Razagyi, temendo a proximidade do temível mogol, contribuiu “com oitenta mil homens” (a maioria mosqueteiros), “dez mil nativos de Pegu, que lutavam com espada e broquel e setecentos elefantes” com homens armados neles montados. Seria ainda despachada uma frota de duzentos navios e quatro mil homens com a missão de se juntar à congénere de Sebastião Gonçalves, colocando-se depois sob seu comando. Tinha como missão Tibau impedir a chegada dos mogóis a Bhulua (pelo menos até que ali demandasse o rei de Arracão e o seu exército) e uma vez expulso o adversário ser-lhe-ia entregue metade desse reino. Para assegurar o cumprimento do combinado, o mercenário português deixou na corte de Arracão, como reféns, um sobrinho seu e vários filhos de alguns portugueses de Sundiva.

De acordo com alguns historiadores, existiria entre Tibau e Min Razagyi um plano secreto de invasão de Bengala. Os arracaneses avançariam por terra; os portugueses por via marítima. Contando com a presença dos barcos de Gonçalves a travarem os mogóis no mar, o rei de Arracão e os seus mercenários portugueses avançaram determinados para Bhulua, tomando a capital Lakhipur. Mas na verdade, o português nada fizera para travar o progresso do contendor; talvez aliciado por um atractivo suborno e certamente ainda atiçado pelo desejo de vingança pela morte dos portugueses do bandel de Dianga. O certo é que as embarcações mogóis subiram livremente o rio em direcção a Bhulua, obrigando os arracaneses a enfrentá-los sozinhos. Pendeu inicialmente a balança para estes; mas os mogóis regressariam em maior número dispostos a recuperar Bhulua e por completo derrotaram o rei de Arracão, que na companhia de alguns dos seus nobres se refugiou nas florestas de Tripura. O rei local, seu involuntário vassalo, aproveitou a situação para se desembaraçar dos agora debilitados senhorios, tendo Min Razagyi escapado milagrosamente num veloz elefante na direcção do forte de Chatigão.

Conduzira entretanto, Tibau, a frota até à ilha Deserta, convidando todos os capitães arracaneses a bordo do seu navio para ali os assassinar a sangue-frio antes do planeado regresso a Sundiva com o espólio. Informado do revés arracanês em terras de Bhulua, decide Sebastião partir em campanha de ferro e fogo, destruindo baluartes ao longo da costa de Arracão – Chatigão, Maju e Ramu. Tirava partido do factor surpresa, pois os arracaneses não temiam qualquer perigo por saberem da existência de um acordo de paz entre o português e Min Razagyi. A campanha de Tibau causou grande destruição. Foram queimados navios de diferentes nações e até o iate favorito do rei, de tamanho extraordinário e acabamento requintado – decorado de forma “muito dispendiosa com ouro e marfim”, como salienta Faria e Souza – seria pasto das chamas. Enfureceu de tal forma o rei a traição de Tibau, que aquele, como retaliação, fez empalar o sobrinho do português, expondo-o num lugar alto do porto de Arracão para que o tio o pudesse ver. Mas o acto não pareceu incomodar minimamente o homem insolente e insensível, habituado à pérfida e à ganância, que era Sebastião Gonçalves Tibau. Retornaria a Sundiva totalmente desacreditado, tanto pelos mogóis como pelo rei de Arracão, seu aliado de ocasião.

O ano é agora 1615 e reina no Arracão Min Khamon. Três navios holandeses demandam Bengala, passando agora os monarcas locais a contar com outro tipo de ajuda militar, de igual capacidade ou superior até à dos portugueses, como o comprova a vitória obtida no primeiro confronto com os nossos em tais águas. Sebastião Tibau, senhor de Sundiva e mais do que nunca desejoso da conquista total de Arracão encontra-se em posição precária, precisando urgentemente de ajuda para manter o poder. Vira-se para Goa, prometendo ao vice-rei, em troca de apoio, fazer-se tributário de Portugal e pagar anualmente uma galeota cheia de arroz, mercancia a ser entregue em Goa ou Malaca. Quanto aos procedimentos passados, Tibau argumenta nada serem mais do que medidas retaliativas pelo assassinato da comunidade lusa de Dianga. Como incentivo adicional, acena ao vice-rei com a perspectiva de posse do vasto tesouro do rei de Arracão. Este último argumento convence Dom Jerónimo de Azevedo a enviar-lhe a ajuda desejada: uma armada composta por “catorze dos maiores galeotas”, um veleiro e um pinque, sob o comando de Dom Francisco de Menezes Roxo, antigo governador do Ceilão.

Parte a expedição de Goa em meados de Setembro e chega a Arracão a 3 de Outubro de 1615, tendo sido enviada antecipadamente uma das galeotas a avisar Tibau da aproximação inimiga. Dom Francisco recebera instruções para atacar de imediato e, por isso, não hesita quando a 10 de Outubro avista uma enorme frota, descendo o rio, encabeçada por diversas embarcações holandesas, “um número tal de navios que não se conseguia avistar o fim”, comenta Faria e Souza. Menezes conta apenas com dezasseis navios, ou melhor dizendo, catorze, pois entretanto um deles deserta, obrigando um outro a partir no seu encalço. O primeiro disparo parte de um pinque holandês, ao qual um confronto geral se segue, continuando ao longo de todo o dia com perdas consideráveis para ambos os lados, embora a perda tenha sido maior no lado holandês já que os portugueses, garante o cronista, “perderam apenas quatro galeotas”. De noite, afasta-se o oponente julgando que os navios faltosos tinham partido em busca de reforços. Dom Francisco decide não renovar o ataque até que se juntasse a ele e aos seus homens o contingente de Sebastião Gonçalves. Aguarda na foz do rio; visíveis no horizonte os panos das cinquenta embarcações de Sundiva, bem guarnecidas e equipadas. Tibau enfurece-se ao descobrir que Dom Francisco iniciara o ataque sem ele, mas depressa se desvanece o amuo pois há que coordenar as frotas em dois esquadrões para, em meados de Novembro, subir o rio. Deparam então com a frota hostil ancorada num local seguro e resolvem atacá-la. Apesar de infinitamente superior em quantidade (compõem-na três divisões), Sebastião Gonçalves sustém a primeira investida, enquanto o pinque vindo de Goa mantém um dos navios holandeses à distância; era clara a nossa vantagem, só que à noitinha um pelouro de mosquete perfura o crânio de Dom Francisco, matando-o instantaneamente. Dá então sinal de retirada Sebastião Gonçalves, até porque entretanto baixara a maré, obrigando as duas partes a separaram-se. No cômputo geral deve ser atribuída a vitória aos portugueses, pois foram muito mais as baixas do lado de lá do que as do lado de cá; mesmo assim, ficaram a boiar nas pastosas águas os corpos de duas centenas de portugueses.

No calor da refrega, ficara para trás a galeota de Gaspar de Abreu, que à mercê dos arracaneses viu toda a guarnição ser dizimada. Abreu seria resgatado por António Carvalho Tibau, mas, mortalmente ferido, acabaria por morrer dias depois. O capitão Dom Luiz de Azevedo, agora no comando das operações, ordena a retirada para Sundiva e, contra as expectativas de Tibau, que contava com a tropa regular estacionada na Índia, apontou as velas a Goa, recusando-se a permanecer ali para dar continuidade aos planos megalómanos de Gonçalves Tibau. Com Azevedo partiriam muitos dos aventureiros de Sundiva, cansados daquela vida, deixando Tibau desprovido de força militar. Assim, bastou ao rei de Arracão chegar no ano seguinte, e pela força tomar posse de Sundiva e das restantes ilhas do delta de Sundarbans, destronando para sempre Sebastião Gonçalves Tibau, que, nas palavras de Faria e Souza, regressaria “à sua anterior miserável condição”.

Joaquim Magalhães de Castro

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