Falando de valores…
Um dos líderes mais proeminentes hoje, dizia há dias, nas vésperas de uma cimeira de chefes de Estado e de Governo, que a ordem liberal – no fundo as ideias que têm servido de guia aos países ocidentais – tudo isso já expirou o prazo de validade e está obsoleto.
Alarga-se pois o debate sobre a caducidade da “velha” ordem internacional, baseada no liberalismo, agora pela voz “autorizada” de, pelos vistos, um arauto dos novos tempos. Assim: liberalismo versusnão-liberalismo? – o que há de novo neste debate? Que argumentos inéditos a História das últimas décadas carreou, para uma discussão afinal velha de pelo menos um século e meio? Ou está-se a querer dar velhos-novos nomes à pura e simples luta pelo poder a nível mundial, tentando legitimar-se, por essa via, um tempo post-americano que muitos anseiam e muitos mais predizem, desde o fim da Guerra Fria?
Afigurou-se-me importante partilhar aqui algumas das minhas reflexões sobre o tema.
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Devo referir liminarmente que a passagem a uma nova ordem internacional post-americana não deve criar quaisquer problemas existenciais a quem estuda História e sabe, por isso, que História é movimento.
O presente renascimento da China é um excelente exemplo do modo como os povos sabem responder aos desafios da subjugação e do subdesenvolvimento.
O DESPERTAR DAS IDEOLOGIAS?
Se o final do século XX pareceu confirmar um certo cansaço das ideologias, para sublinhar quase só o esforço convergente do desenvolvimento económico, em áreas do mundo, subdesenvolvidas até então, nem por isso ficou suspensa a dinâmica decorrente da emergência de novos poderes mundiais, candidatos à hegemonia global, como é claramente o caso da China e, mais recentemente, da Rússia, de outro modo.
Tal emergência, confirmada quanto à China pela sua ascensão ao patamar de segunda economia do mundo; e, quanto à Rússia, pelo exímio protagonismo do seu líder, em considerar-se parceiro indispensável na solução de quase todos os problemas globais, tal emergência, dizia, obriga a velha ordem saída da Segunda Guerra Mundial a assumir nova geometria, nova configuração.
UMA NOVA GEOMETRIA
Já não estamos perante o dueto (o duelo…) Estados Unidos-União Soviética do tempo da Guerra Fria; nem no brevíssimo reinado da grande potência única, a chamada unipolaridade. Estamos noutro quadro ainda: três grandes potências (diplomático-militares, digamos assim, América-China-Rússia), três grandes economias ou blocos económicos não totalmente coincidentes (Estados Unidos, China e… a União Europeia, não a Rússia), com sistemas políticos diversos entre eles.
É uma ordem multipolar em gestação, aquela em que estamos a viver. E de multipolaridade imperfeita, por duas razões:
– um dos poderes mundiais não possui economia equiparável aos outros dois (Rússia);
– e o bloco económico europeu, sem autoridade central equivalente à do Estado-Nação, não tem estrutura política equivalente ao dos outros membros do clube restrito dos Grandes.
Assim, América e China são as duas maiores economias; quanto à União Europeia, sublinhe-se o agrupamento natural da quarta, sexta, sétima e oitava economias, correspondentes à Alemanha, França, Reino Unido (ainda…) e Itália; e finalmente a Rússia, que só vem em 12º lugar.
Poderia citar-se ainda, neste contexto, o caso específico da Índia que, sendo a quinta economia do mundo, parece não se situar no mesmo plano da competição entre poderes mundiais, num deficit notório de protagonismo.
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No novo jogo pela hegemonia mundial, enquanto a China se ergueu e tem crescido de forma exponencial, graças ao desenvolvimento da sua economia, que fatalmente arrasta influência política e obriga o País a dotar-se de forças armadas adequadas ao seu novo papel internacional – a Rússia, pelo contrário, utiliza como trunfo as suas riquezas naturais, principalmente petróleo e gás, a sua indústria militar e uma mobilidade diplomática impressionante (sublinho esta) que tem levado o País a estar em várias frentes ao mesmo tempo, desde a presença militar decisiva na Síria até ao papel menos provável mas não menos eficaz na Venezuela.
E é a esta postura “sui generis” da Rússia como “nova-velha” grande potência que corresponde, pelos vistos, uma outra singularidade: a de se fazer arauto de uma nova era pós-liberal. Importa saber então o que tal receita contém… e não contém….
VALORES… ILIBERAIS?
A Ordem Internacional Liberal comportava quatro pilares: uma economia internacional cada vez mais aberta, regras e instituições para a cooperação multilateral, a democracia como o sistema político interno ideal e o poder americano em todas as suas formas como subscritor e garante do sistema. Estes pilares vêm sendo sujeitos a pressão e como que começaram a vacilar, antes mesmo da chegada de Trump ao poder.
Mas os resultados eleitorais em toda a Europa Ocidental reforçaram a ideia de que o fenómeno de erosão da velha ordem liberal não é apenas um efeito Trump, mas uma revolta mais ampla dos que perderam com a globalização.
A aparição de Estados não liberais dentro da União Europeia apresenta um desafio suplementar à própria UE. Citam-se a Hungria e Polónia, Eslováquia e República Checa como Estados que exibem a erosão das liberdades individuais e o maior controlo do poder do executivo sobre o judiciário, o legislativo e os media.
UMA VISÃO CATÓLICA DA QUESTÃO?
Qual o ponto de vista dos cristãos e da Igreja sobre a propalada emergência de uma nova ordem iliberal?
Ao Vaticano não compete “escolher” regimes políticos, questões, tão só, da esfera da soberania nacional. Mas compete à Igreja sublinhar o que é a sua doutrina constante.
É que, sabe-se, os excessos do liberalismo não são temas novos nem surpreendentes para a Igreja, cuja doutrina social é inspirada (também) na sua condenação, desde a encíclica “Rerum Novarum”, de Leão XIII, de 15 de Maio de 1891.
A submissão do ser humano à lógica exclusiva do lucro, o desrespeito pelos trabalhadores, a desvalorização da família como célula social básica, a exploração do trabalho infantil e da mulher (e da grávida) – tudo são temas insistentemente abordados no decurso do último século e meio pelo magistério da Igreja.
Serão esses excessos de uma sociedade liberal materialista que são “obsoletos” – como pretende o líder inicialmente referido? Ou o exercício constitucional de liberdades fundamentais?
Dos quatro pilares da Ordem Internacional Liberal criticada por aquele líder, ressaltam-se os regimes democráticos e o poder hegemónico americano. Mas… e quanto a uma economia internacional cada vez mais aberta? E o papel das instituições multilaterais para a cooperação?
E o que propõe ele de novo, de original? Um modelo de sistema, moralmente superior, mais respeitador da pessoa humana? Ou apenas a velha receita, de tantas provas históricas dadas, de redução do espaço da cidadania? É a questão, a mais decisiva, para cada um responder….
Carlos Frota