Uma procissão original na Ria Formosa

Uma procissão original na Ria Formosa

Depois de um desgastante evento de quatro dias na Praia da Rocha, em Portimão, tivemos o prazer de rever velhos amigos dos anos que vivemos em Macau.

Participámos com o Dee Thai Food Truck no maior evento de música alguma vez realizado numa praia de Portugal, o AfroNation, que levou ao Algarve mais de quarenta mil pessoas, provenientes de países tão díspares como o Reino Unido, o Gana, os Estados Unidos ou a Jamaica. O AfroNation é um evento direccionado à comunidade “afro”, sendo a música de origem caribenha e africana.

Foram quatro dias de intenso trabalho, em que confeccionámos mais de duzentas refeições. Sendo a nossa equipa composta apenas por dois elementos, é fácil de concluir que chegámos ao final do evento completamente esgotados, tanto física como emocionalmente. É que até a despensa tinha de ser reabastecida diariamente.

Finda a “maratona” fomos brindados com a visita do Robert e da Lilly, mais os dois filhos deste casal, que depois de duas décadas a viver em Macau mudou-se para a Alemanha, país natal do Robert. Curiosamente, conhecemo-los através da paixão comum que temos por barcos. O Robert e a Lilly eram proprietários do conhecido veleiro Katy J, que ainda se encontra na Marina do Lamau, onde também está o nosso antigo veleiro, o Elissa, entretanto rebaptizado com outro nome.

O Robert e a família vieram a Portugal passar umas curtas férias e estiveram com uma outra amiga de Macau, que há dois anos regressou a Portugal depois de ter exercido funções no território, na área do Direito. Aproveitámos a ocasião para almoçarmos juntos e gozarmos uma tarde de praia em Armação de Pêra, o que permitiu colocarmos a conversa em dia. Entre outros assuntos, falámos de Macau e da cada vez pior qualidade de vida que os residentes vão tendo de enfrentar e – como não podia deixar de ser – falámos sobre barcos, enquanto nos deliciávamos com alguns que iam desfilando à nossa frente no horizonte. Embora a conversa tenha durado umas boas horas, muitos outros assuntos ficaram por abordar, sendo certo que mais oportunidades irão surgir para que estejamos juntos.

Nesse mesmo dia, conseguimos visitar a capela de Santo António, sobre a qual já escrevi numa crónica anterior. No regresso da praia verificámos que estava – finalmente – aberta ao público. Esteve durante um longo período fechada para obras, apresentando-se agora no seu completo esplendor, com o interior e exterior restaurados. Esperamos que o bom-senso impere e que não voltem a danificar – propositadamente – um património que é de todos.

Entretanto, com pena nossa, embora se justifique pois estivemos a trabalhar, perdemos a oportunidade de presenciar a uma das mais características manifestações da fé católica no Algarve.

Precisamente no último dia do AfroNation teve lugar a procissão anual em honra de Nossa Senhora dos Navegantes, na ilha da Culatra. 4 de Agosto é dia de festa religiosa e profana. Desde a década de 80, no primeiro Domingo de Agosto, a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, que está exposta durante todo o ano na capela da Culatra, embarca a bordo de uma traineira e vai a Olhão “buscar” a imagem de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da cidade. As duas imagens navegam então até à ilha da Culatra, onde se realiza uma procissão e celebra missa para milhares de pessoas, sejam crentes ou não crentes. No final da festa religiosa, já com o Sol a esconder-se no horizonte, a imagem de Nossa Senhora do Rosário regressa a Olhão, navegando uma vez mais nas águas da Ria Formosa.

Um pouco decepcionados por não termos tido a chance de assistir à procissão, uma vez que é nossa intenção há já alguns anos, ficámos ainda assim satisfeitos por saber que os nossos amigos participaram na mesma. Com a ajuda da nossa amiga comum, ex-residente em Macau e cuja família vive repartida entre Olhão e a ilha da Armona, seguiram o barco-andor numa lancha, enquanto durou a manifestação religiosa.

A procissão e todas as iniciativas a ela associadas ganharam maior relevo e importância com a sua candidatura a Património Cultural Imaterial, como parte integrante da comunidade da Culatra. A ilha, as suas gentes, labores e crenças religiosas fazem parte da candidatura e estão actualmente protegidas pelo Estado. Um passo que os académicos consideram essencial para a preservação da pureza das tradições e dos direitos dos moradores desta ilha isolada da Ria Formosa.

A título de curiosidade, a pequena ilha, ou conjunto de ilhéus, pertence ao Concelho de Faro. Do conjunto fazem parte a Culatra, Hangares e Farol, que estão habitados a tempo inteiro desde finais do século XIX. No início, a pesca centrava-se nas armações da sardinha e do atum. Mais tarde surgiram outras artes como sacadas, alcatruzes, murejonas, covos, aparelho de anzol, redinha e tapa-esteiros. Eram utilizadas embarcações a remos e à vela, construídas em madeira (os denominados botes, dóris, lanchas, chatas e saveiros). Hoje, as artes predominantes são as redes de tresmalho e de enmalhar, e os barcos utilizados são fabricados em fibra e equipados com motores.

A apanha de marisco é mais um complemento da economia local, de acordo com o sítio oficial criado para divulgar mais este património que a todos deve orgulhar. O mesmo sítio da Internet refere que as casas tradicionais eram feitas em “barrão”, sendo que até ao início da década de 90 eram iluminadas por candeeiros a petróleo e geradores. A água era captada dos poços.

Aconselhamos os leitores a visitaram o local, desde que tenham tempo para fazê-lo, por forma a compreenderem como vive a comunidade ali residente.

João Santos Gomes

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