Uma fronteira sui generis

Visitei pela primeira vez o Camboja nos primeiros anos da década de 1990, pairava ainda o espectro dos temidos khmeres vermelhos.

Não devia haver fronteira em todo o Sudeste Asiático que marcasse tanto a diferença de duas nações como a que separava o Vietname do Camboja. Do lado leste, em Moc-Boi, os guardas em uniforme verde-claro, enfiados num pequeno cubículo, controlavam passaportes com gestos rígidos e despachavam os candidatos a uma viagem terrestre pelo interior do Camboja para um descampado terra de ninguém onde mercadores de ambos os países carregavam e descarregavam carrinhas cheias de sacos com fios para tecelagem, frutos, peças de motores e electrodomésticos. Era perfeitamente visível que a balança dos produtos transaccionados pendia mais para o lado vietnamita, país que mais tinha para oferecer, inclusive mulheres. A grande maioria de raparigas que serviam nos cabeleireiros de rua e bordéis de Phnom Penh e de Siam Reap eram de etnia vietnamita, e praticamente tudo o que estava à venda nas lojas e armazéns do Camboja era importado.

Fiquei à espera umas três horas nessa terra de ninguém. À sombra de uma frondosa árvore, dois indivíduos desmontavam o motor de uma motocicleta e, peça por peça, escondiam-no em volta da cintura e dentro das calças largas. Não muito longe, soldados cambojanos descansavam deitados em redes de juta, assistindo placidamente a todos aqueles “movimentos ilegais”. Entretanto, instalava-se no terreiro um verdadeiro mercado improvisado. Vendedores de água mineral e refrigerantes circulavam por ali, insistindo sobretudo junto dos estrangeiros que tinham mais para gastar. Vietnamitas falavam Khmer e cambojanos falavam Vietnamita. Nem parecia que estava perante dois povos que não nutriam a mínima simpatia entre si.

«Não temos qualquer problema em atravessar a fronteira», assegurava um dos candongueiros. Apesar desta afirmação, o controlo na alfândega cambojana foi bastante minucioso. Toda a bagagem guardada na camioneta que me trazia de Saigão foi inspeccionada e os funcionários bateram com ferros na carroçaria do veículo em busca de fundos falsos. Nos serviços de imigração, porém, para nós, estrangeiros, o ambiente foi bem mais descontraído do lado khmer do que do vietnamita, onde a pose dos agentes era, mais do que tudo, marcial. Ali, era permitido fotografar, e os polícias folheavam os nossos passaportes sem qualquer suspeição, mostrando-se até curiosos e fazendo perguntas nada inquisitórias.

Em contraste com os verdejantes campos de arroz e a laboriosa movimentação de camponeses de chapéus cónicos, as terras do Camboja surgiam desoladas, secas, apenas com barracas de colmo e bambu suspensas sobre estacas. As pequenas aldeias que atravessávamos nada tinham do novo-riquismo galopante e da modernização imposta no outro lado da fronteira. Os mercados rurais eram bem mais sóbrios e as lojas tinham menos produtos. Vestígios de multinacionais, somente nos cartazes que publicitavam Coca-Cola ou Red Bull, importados da vizinha Tailândia. De fabrico nacional só mesmo a cerveja Angkor Wat.

O investimento estrangeiro na província cambojana era quase nulo, mantendo-se contudo em actividade – presumo que por teimosia inexplicável – uma empresa de madeiras intitulada “Cambodia-Soviet Joint-Venture”, símbolo de um tempo ultrapassado. Porém, uma vez chegados a Phnom Phen, o panorama mudou radicalmente.

Esvaziada em 1975, após o êxodo forçado de toda a sua população para os campos, concretizando assim o sonho demente de Pol Pot, a capital do Camboja era já uma urbe movimentada e em crescimento, embora de uma forma bastante menos acelerada que as cidades congéneres do Sudeste Asiático. Poupada, até ver, à cega ganância dos grandes grupos imobiliários sediados em Hong-Kong, Singapura e Taiwan. Constava que os investidores chineses ultramarinos mostravam-se reticentes em erguer torres e centros comerciais, devido à instabilidade política. Como em todo o Sudeste Asiático, a etnia de maior sucesso no Camboja era a chinesa, senhora absoluta de toda a actividade comercial.

Joaquim Magalhães de Castro

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