Relações entre Macau e o Camboja – Parte 1

Missionários, aventureiros e uma cidade perdida

No seu livro “Batalhas da Companhia de Jesus”, escrevia António Francisco Cardim: «O reino do Camboja não tem até agora dado matéria de larga escritura, porque nem na sua grandeza e sítio da terra e províncias, em riqueza tem cousa digna de se contar, e muito menos na conversão dos seus naturais à nossa santa fé. É abundante de arroz, e tem muito charão, chumbo, cera, alguma águila e japão. O benjoim amendoado desce pelo rio abaixo do reino dos Laos, como as pontas de abada. Em razão da abundância de mantimentos fazem os jaus e cochinchinos escala na cidade de Rasseca, metrópole de todo o reino, os holandeses vão buscar o benjoim e mantimentos, os japões courama, águila, japão e charão e algumas peças de seda que levam os chincheos. Os portugueses de Macau em tudo tratam hoje, por falta de comércio de Japão e Filipinas».

Socorremo-nos deste texto, para elaborar um breve apontamento acerca das relações existentes entre Macau e Camboja, e, por correlação histórica, entre Portugal e o Camboja.

Convém recordar que, aquando da conquista de Malaca, o reino do Camboja estava inserido numa região que genericamente se designava por Indochina e que englobava, além do reino khmer, os reinos do Sião, Laos, Pegu, Arracão, Champa e Anan, que compreendia a Cochinchina e o Tonquim, ou seja, o Vietname actual.

 

UM OLHAR PIONEIRO

De facto, no que à implantação do Cristianismo diz respeito, a missionação foi um total fracasso. Frei Gaspar da Cruz, o primeiro religioso no reino, esteve no Camboja durante um ano (1555 – 56) e conseguiu baptizar apenas um nativo, que acabaria por falecer. O dominicano descreveu, no entanto, o País, o povo e respectiva cultura e religião no seu excelente “Tratado das Cousas da China e do Reino de Ormuz”. Aqueles que designava «sacerdotes de seus ídolos», vestiam panos amarelos cingidos «como a demais gente e uma maneira de estolas também amarelas com certas dobras e costuras em que têm suas superstições». Mas apesar deste olhar preconceituoso, nem Cruz nem os outros religiosos que ali foram predicar tiveram quaisquer razões de queixa. Como escrevia na sua “Ethiopia Oriental” Frei João dos Santos, «o rei da terra os recebeu benignamente e os favoreceu muito» dando-lhes até lugar para que pudessem «construir as suas igrejas e fazer os seus baptismos».

Na sua narrativa Gaspar da Cruz tão pouco se esquece de referir «as desordens provocadas pelos portugueses no Camboja». Antes da chegada do dominicano, era comum ver comerciantes e mercenários portugueses a operar na região da Indochinha (Pegu, Arracão, Sião, Laos, Champa, Camboja e o Anam).

Tomés Pires descreve o Camboja como uma «terra de muitos rios» e de «gente guerreira» que «não obedece a ninguém». Fernão Mendes Pinto, acompanhado por António de Faria, na “Peregrinação” relata o rio que «divide o senhorio de Camboja e o reino de Champa», fala de «uma terra agreste e de grandes serranias» e ainda de «um grande lago, a que os naturais da terra chamam Cunebete» que não pode ser outro senão Tonlé Sap, um dos mais ricos recursos de peixe de água doce, ligado à capital Phnom Penh por um canal de mais de cem quilómetros. João de Barros, a este propósito, menciona «um lago de mais de sessenta léguas de comprimento» e «o rio Mecom, cujo nascimento é na região da China». Também pelo Camboja andou, em meados de seiscentos, o frade agostinho Sebastião Manrique, que nos descreve o País no seu “Itinerário”.

Igualmente dominicanos, Lopes Cardoso e João Madeira, com o auxílio de uma comunidade portuguesa entretanto residente – o resultado de casamentos inter-raciais entre mulheres locais e mercadores portugueses que operavam por conta própria – lograriam, em 1583, converter alguns khmers e construir uma igreja.

 

A DESCOBERTA DE ANGKOR WAT

Os relatos de viajantes e missionários do século XVIII permitem-nos saber que essa comunidade de portugueses continuava a existir nos arredores de Phnom Penh. Ainda hoje famílias cambojanas relembram as suas origens lusitanas com orgulho. Subsistem mesmo, na língua khmer, vocábulos de origem portuguesa, tais como: kradas (carta, papel), ley lang (leilão), riel (dinheiro, real), sabu (sabão). Neste processo de miscigenação participaram muitos portugueses de Macau. Os mestiços portugueses foram praticamente os únicos cambojanos que aderiram ao Catolicismo.

Frei Silvestre de Azevedo terá sido o religioso que mais sucesso teve no Camboja. Bem cotado na corte, a ponto de ter sido distinguido pelo rei com um título honorífico, redigiu na língua khmer os “Mistérios da Fé Cristã”. Por sua vez, o capuchinho frei António da Madalena descreveu pormenorizadamente ao cronista Diogo de Couto, a misteriosa capital dos khmers: Angkor Wat. Madalena foi, acredita-se, o primeiro ocidental a avistar esse magnífico exemplo de arquitectura religiosa, actual Património da Humanidade.

Em 1583 o rei do Sião ameaçava invadir o Camboja. Por essa razão o soberano local, Satha, tudo fez para favorecer o estabelecimento de missionários e mercadores portugueses e espanhóis, esperando obter auxílio destes em futuras situações de aperto. É neste contexto, de constantes conflitos intestinos, tão típicos de toda aquela região, que surgem personagens como Diogo de Veloso, Pantaleão Carneiro ou Francisco Machado. Bem depressa Veloso – que aprendera khmer – se torna num dos favoritos do rei, acabando por casar com uma prima deste. A simpatia real abrangia ainda um outro aventureiro: o espanhol Blas Ruiz. A actuação de ambos contribuiria para a pacificação do País e a coroação do soberano Barom Reachea II, em 1658. Veloso e Ruiz seriam nomeados governadores de duas províncias, como recompensa pelos serviços prestados, como atesta documento da época: «Dei ao capitão Diogo Portugal a província de Bapuno (Baphnom) e ao capitão Blaz Castilla a de Trang (Treang)».

Diogo Veloso, natural de Amarante, torna-se assim governador da província de Baphnom, senhor da Ilha do Choro (no meio do Mekong) e marido de uma das mais belas primas do soberano khmer Prah Alamkara (ou Satha). A sua memória perdura hoje num monumento mandado erigir em 1934 pelo governador-geral na povoação de Neak Luong, com a seguinte inscrição, em francês: «Diogo Veloso. Né à Amarante, Portugal. Au service du Roi do Cambodje Prah Alamkara, épousa sa cousine, aida à reconquerir son royaume sur un usurpateur. Reçu en recompense la province de Ba Phnom. Mourut en combat en 1599».

A partir de então, o rei khmer jamais prescinde dos serviços militares prestados pelos portugueses, fundamentais para que lograsse pacificar o País e evitar invasões por parte dos reinos vizinhos. Pelos vistos, a tradição manteve-se, pois de entre as figuras públicas do Camboja recente, houve, pelo menos, um destacado general de apelido Fernandes e um político de apelido Monteiro.

 

TENTATIVAS MISSIONÁRIAS

Sabendo da existência de Diogo Veloso, «que possui uma ilha ou península junto ao mar dada pelo rei em recompensa dos seus serviços e na qual existe já um forte e artilharia», os jesuítas decidem tentar a sua sorte no Camboja. Muitos dos missionários que aí estiveram ficariam, de algum modo, ligados a Macau. É o caso de Pero Marques, o primeiro religioso da Companhia a visitar o reino. Rezam as crónicas que «no ano de 1616, em que se intentou a missão de Camboja, foi mandado de Macau a padre Pero Marques, português, natural de Mourão, que viera desterrado do Japão em ódio de nossa fé no ano de 1614, e por razão da guerra de Camboja, se interrompeu o curso da missão, recolhendo-se o padre de Camboja a Macau». Testemunham ainda as crónicas a origem japonesa dos padres Justo – «mandado de Macau, pelo ano de 1624» – e Romão Nixi , «japão da nossa Companhia». Recordam também o genovês Francisco Buzomi «enviado a Macau em 1608, onde estudou teologia no colégio de São Paulo durante 5 anos» e que «esteve também em Camboja, quando foi desterrado do Cochinchina»; Francisco Rivas, que missionou no Camboja em 1648 e seria nomeado reitor do colégio de São Paulo em 1673; e ainda o siciliano Carlos della Rocca, que teve duas estadas no Camboja, tendo sempre regressado a Macau.

Trabalharam também no Camboja o português André Gomes, de 1670 a 1680, e João Baptista Maldonado, nascido na Bélgica, que chegou a Macau em 1667 e faleceu em Phom Penh em 1699. Um outro dominicano, António Caldeira, que em 1585 residia em Macau, missionou nesse país do Sudeste Asiático em 1598.

Viviam no Camboja, desde 1724, vários capuchos italianos, cuja ida para o reino fora patrocinada pelo Senado de Macau, convencido que aqueles desejavam cooperar com os sacerdotes do Padroado Português. Cedo se descobriu que, afinal, era seu objectivo substituir esses missionários. Não obstante, em 1725, o mesmo Senado passaria cartas de recomendação a dois outros italianos, desta feita da Propaganda Fide, que a Macau aportaram, vindos de Portugal. Partiriam com as cartas que os recomendavam aos reis do Camboja e de Johore, que tiveram resposta positiva perante esses documentos. A este respeito seguir-se-ia uma troca de correspondência entre o Senado, o monarca khmer e o governador de Macau da época, António Carneiro Alcáçova.

Apesar de todos os tumultos políticos, o certo é que houve sempre um comércio quase ininterrupto, embora escasso, entre a costa da Cochinchina e do Camboja e Macau. Frequentemente, esta cidade servia de porto de passagem na viagem entre Manila e o Camboja, que se tornara bastante regular. As relações comerciais só não foram mais intensas porque os portugueses se recusaram a estabelecer uma feitoria em Turão, pouco acima de Faifo, na costa da Cochinchina, à semelhança do que haviam feito no Japão e no Sião. E isto, apesar das vantagens oferecidas pelos soberanos locais. Faifo era um grande centro comercial dominado por comerciantes japoneses e chineses.

Cedo a concorrência dos holandeses, que tinham feitoria na Cochinchina, constituiria uma ameaça. Não obstante, muitos foram os portugueses de Malaca e Macau que optaram estabelecer-se na região. O que vem em contra a observação negativa do religioso cronista Francisco Cardim, que do Camboja dizia que «nem na sua grandeza e sítio da terra e províncias, em riqueza tem cousa digna de se contar».

Joaquim Magalhães de Castro

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