Navegador esquecido
Mais por deferência para com uma amiga estrangeira de passagem pelo nosso país do que por convicção, acedi fazer um passeio de moliceiro nos dois troços da Ria de Aveiro disponíveis para tal. Para quem não saiba, essa é, nos dias que correm, actividade bastante popular na cidade dos ovos moles e conta com muita e variada oferta de serviços. Óptimo. Não só isso é factor gerador de emprego, como contribui para a continuidade no activo de uma embarcação que eu, para ser sincero, julgava quase extinta. Aquilo até já parece uma Veneza em miniatura. Nas ruas do Rossio aveirense, agitando panfletos e volantes multilingues, os funcionários das diferentes empresas fluviais, t-shirt da casa a preceito, tentam cativar os (cada vez mais) turistas que por ali vagueiam. Nas embarcações – que não chegam a parar, tal o afluxo de visitantes –, sempre a postos, o piloto, que é também mestre (pessoa mais velha; certamente haverá entre eles antigos homens do moliço), e o guia, por norma bastante mais novo. Ora, é desta última espécime que vos quero falar.
Ou muito me engano ou os guias da Ria de Aveiro não têm a preparação que se exige a quem carrega o peso da responsabilidade de fazer as honras à casa de uma cidade. E se essa cidade ostenta pergaminhos como os da “rainha da Costa da Prata”, então, é natural que a responsabilidade aumente. O guia que me calhou na rifa, por exemplo, acenando uma escarlate vuvuzela (serve para alertar os passageiros aquando das passagens sob as arcos das pontes) limitou-se a explicar o óbvio – as moradias arte-nova dos burgueses de outrora; os antigos locais de armazenagem e venda do bacalhau (apenas uma está no activo); as incontornáveis salinas, ocultas ao olhar de quem vai sentado no moliceiro – e tomou-nos a todos por parvos quando, ao desembocarmos num dos extremos da Ria, naquele quase-lago situado mesmo em frente da antiga fábrica de cerâmica Jeronymo Pereira Campos – hoje transfigurada em centro de congressos, espectáculos e conferências –, à qual, diga-se de passagem, não fez qualquer referência (embora esse emblemático edifício de barro vermelho seja considerado exemplo maior da arquitectura industrial do século XX), soltou, como quem cumpre meta almejada, um sonoro e exclamativo: «em frente podem ver o hotel Mellia Ria!». E o Mellia Ria lá estava, espampanante no seu cinzentismo, aliviado por um letreiro com caracteres garrafais. La Palisse não teria feito melhor figura que esse guia de um determinado moliceiro num dos ramos da Ria de Aveiro… Perante tamanha redundância só me ocorreu uma ideia: “será que o homem recebe comissão pela gratuita e descabida menção ao gigante hoteleiro de projecção planetária?”.
Entretanto, lá atrás, ficara esquecido (abrigado à sombra das árvores, vá lá, ao menos isso) mudo e quedo no seu pedestal, corpo inteiro de bronze moldado pelo mestre Euclides Vaz (autor também da estátua do nosso Jorge Álvares), de astrolábio na mão e olhar fixo no Sul, o navegador João Afonso de Aveiro. A sua presença naquele espaço nobre da cidade resulta de uma época em que, por deliberação do Ministério das Obras Públicas, se implantavam nos espaços de maior sociabilidade estátuas de figuras de renome da nossa história, servindo elas de material didáctico e contribuindo ao mesmo tempo para o arranjo paisagístico do local. Longe estávamos da actual despudorada promoção de formas de “arte” desprovidas de qualquer sentido e que muitas vezes não passam de meras encomendas para os amigos.
Para quem não saiba, João Afonso de Aveiro foi, tão-só, o ilustre piloto da frota capitaneada por Diogo Cão que, às ordens de D. João II, costeou a África em 1484, descobrindo para a Europa os reinos do Zaire e do Congo. Certamente agradado do que dele disserem os seus superiores, el-rei encarregaria o navegador da exploração do rio Formoso, resultando dessa empresa o descobrimento do reino do Benim, durante algum tempo conhecido por “Terras de João Afonso” ou de “Terras de Afonso de Aveiro”, de onde seria enviada a primeira pimenta para o reino. Em Benim acabaria por falecer, após aí ter estabelecido uma série de feitorias. Foi João de Aveiro também aquele que forneceu a D. João II informações sobre o Preste João das Índias, as quais serviram de incentivo para o começo das relações de Portugal com a Etiópia.
Como se vê, não é coisa pouca o feito do dito aveirense.
Findo o passeio, educadamente perguntei ao guia se não se importava que fizesse um reparo. Erro meu. Apesar de logo dizer que não, que não se importava, após ouvir o que lhe tinha para propor, e que era: «porque é que não menciona a figura do navegador João Afonso de Aveiro, que é filho da terra e figura grada dos Descobrimentos Portugueses, ademais a sua estátua é bem visível a quem navegue no canal?», mostrou cara de desagrado, disparando, em jeito de defesa (embora nenhum ataque tivesse sido desferido), que o passeio não era «uma lição de história», escusando-se com um «eu até nem sou de cá, sou do Porto».
Enfim, a verdade é que o homem não devia ter a mínima a quem me estava eu a referir.
Joaquim Magalhães de Castro