Por que há diferenças nas descrições dos Evangelhos?
Se tivermos lido os Evangelhos muitas vezes, com certeza verificámos algumas discrepâncias nas descrições dos quatro evangelistas. Pode ver-se, por exemplo, no milagre dos pães e dos peixes (Mateus 14:15-21; Marcos 6:35-44; Lucas 9:12-17; João 6:5-13).
Por que há diferenças nas descrições? Para se responder a esta pergunta teremos que nos lembrar de como os Evangelhos foram escritos. O Catecismo da Igreja Católica (CIC), no ponto 126, explica que podemos distinguir três estágios na elaboração dos Evangelhos:
1– A vida e os ensinamentos de Jesus. A Igreja sustenta firmemente que os quatro Evangelhos, “cuja historicidade afirma sem hesitações, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus, realmente operou e ensinou para a salvação eterna dos homens, durante a sua vida terrena, até ao dia em que subiu ao Céu” (A Palavra de Deus – Dei Verbum 19).
2– A tradição oral. “Na verdade, após a Ascensão do Senhor, os Apóstolos transmitiram aos seus ouvintes (com aquela compreensão mais plena de que gozavam, uma vez instruídos pelos acontecimentos gloriosos de Cristo e iluminados pelo Espírito de verdade) as coisas que Ele tinha dito e feito” (A Palavra de Deus – Dei Verbum 19).
3– Os Evangelhos escritos. “Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas, entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das Igrejas, conservando finalmente o carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas verdadeiras e sinceras acerca de Jesus” (A Palavra de Deus – Dei Verbum 19).
No primeiro estágio, quando Jesus pregava, Ele ensinava como os Rabis (Mestres – Professores do Templo) de Israel. Repetiu os mesmos ensinamentos em várias ocasiões, provavelmente usando palavras diferentes para ajudar os discípulos a não se esquecerem. Assim, naturalmente que houve nuances nas descrições sobre a mesma parábola.
No que respeita ao segundo estágio (tradição oral), os apóstolos teriam diferentes formas de descrever ou explicar os acontecimentos.
Já quanto ao terceiro estágio, sabemos que dois dos apóstolos que escreveram o Evangelho foram testemunhas presenciais: Mateus e João. Este último escreveu: «Este é o discípulo que foi testemunha e que escreveu estas coisas; e sabemos que este testemunho é verdadeiro (João 21:24)». No entanto, na composição do Evangelho, cada um lembrou-se do que se passara de acordo com a sua memória e maneira de compreender os factos.
Os outros dois apóstolos – Marcos e Lucas – recorreram a dados de diferentes testemunhas presenciais, sendo que estas descreveram os acontecimentos à sua maneira. Conforme vimos, Marcos utilizou dados das pregações de São Pedro em Roma, e Lucas de São Paulo. São Lucas escreveu: «Muitos se empenharam em compilar um relato dos factos que recebem pleno crédito entre nós, assim como esses factos nos foram transmitidos por aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e proclamadores da mensagem. Assim, eu também, depois de pesquisar todas as coisas com exatidão desde o início, resolvi escrevê-las para o Senhor com uma ordem lógica, Excelentíssimo Teófilo, para que tenha plena certeza das coisas que lhe foram ensinadas oralmente (Lucas 1:1-4)».
Dado que os evangelistas se dirigiam a diferentes grupos de pessoas com propósitos específicos, eles seleccionaram, sintetizaram ou explicaram o que pensaram ser mais adequado aos seus leitores. Foi importante seleccionar, pois «há muito mais coisas que os judeus fizeram; e se tudo fosse contado, suponho que o próprio mundo não poderia conter os livros que fossem escritos (João 21:25)».
Por alguma razão João defende que é preciso sintetizar alguns ditos e acontecimentos da vida de Jesus, porque alguns deles são demasiado longos ou muito parecidos entre si. Como diz Lucas, é necessário «escrever uma descrição ordenada» para o leitor. Por exemplo, para os judeus convertidos, Mateus mostra que o Messias cumpriu as profecias do Antigo Testamento que lhes eram familiares. Mas já Marcos, ao escrever para os convertidos de Roma, sentiu a necessidade de explicar os costumes judaicos (7:2-4; 14:12; 15:42) e o sentido das palavras em Aramaico (3:17; 5:41; 7:11,34; 15:22,34).
Pe. José Mario Mandía