São Jerónimo

Doutor, tradutor, exegeta bíblico

Strídon, ou Estridão: uma cidade romana antiga, na fronteira entre a Dalmácia e a Panónia. Bom, na geografia actual é mais fácil de identificar, até principalmente pela tragédia humana que tem ocorrido ao longo deste Verão no território. A Dalmácia corresponde, aproximadamente, à Croácia e Eslovénia, a Panónia à Hungria: pois, um dos cenários de passagem das vagas de milhares de refugiados em demanda da Alemanha e Norte da Europa. Sim, a personalidade de que hoje nos ocupamos nasceu naquela cidade, neste território. Doutor da Igreja, sábio, erudito, poliglota, grande intelectual, santo acima de tudo: Jerónimo, um dos pilares do Cristianismo e uma das suas figuras mais marcantes, indelevelmente.

Recordando o cabeçalho do L’Osservatore Romano, de que falámos há algumas semanas – “E as portas do inferno não prevalecerão [contra Ela]!” – bem poderíamos associá-lo a São Jerónimo e outros homens do seu tempo, época conturbada para a Igreja. Entre erros doutrinais e heresias, registam-se incursões dos povos germânicos no Império, ameaçando a Cristandade, que começava a despontar depois do édito de Milão de Constantino, em 313, de tolerância em relação à Fé Cristã, reforçado no I Concílio de Niceia, em 325, o concílio do Credo. Mas os tempos eram ainda de conturbação, eram necessárias figuras sólidas, na fé, na inteligência e na cultura, luminares. Como São Hilário, de Poitiers, São Ambrósio, de Milão ou Santo Agostinho, também poderemos nomear São Jerónimo, também um dos Santos Padres da Igreja.

Jerónimo nasceu de facto em Estridão, no ano de 342, mas dadas as diferentes interpretações melhor será dizer que foi entre 331 e 347. A sua cidade foi destruída pelos Godos, mais tarde, dada a sua localização numa região de passagem entre o Sul e o Centro e Norte da Europa. “Que tem um nome sagrado”, este é o significado do nome Jerónimo, que dedicou a sua vida ao estudo de línguas e, consequentemente, das Sagradas Escrituras, além da sua tradução e fixação textual. Estudou Latim em Roma, com o maior mestre da língua do seu tempo, Donato, um ilustre gramático pagão. Jerónimo chegou a ser um grande latinista e grande conhecedor do Grego e de outros idiomas, como Hebraico e Aramaico. Todavia, não conhecia tão bem os livros e autores espirituais como conhecia Cícero, Virgílio, Horácio e Tácito, ou Homero e Platão, que a todos conhecia de cor. Retórico, filósofo, gramático, com juventude e dinheiro, numa cidade magnífica como Roma, mas estudioso e aplicado, Jerónimo não se prendia muito com a fé e a espiritualidade cristãs. O circo, o teatro, a vida mundana eram-lhe mais apelativos.

Mas não seria assim sempre. Com 18 anos torna-se catecúmeno, preparando-se aos Domingos para o baptismo, visitando as catacumbas dos mártires, numa fase em que começou a discernir mais acerca da espiritualidade cristã. Depois da sua conversão e baptismo em 366, parte para a Gália, com seu amigo Bonosus, em 367, via Aquileia, no Norte de Itália, onde contacta com experiências monásticas siríaco-egípcias. Instala-se em Trier (actual Alemanha), perto do Reno, com Rufino de Aquileia e Heliodoro de Altino. Contacta com as obras de Hilário de Poitiers, ficando tocado pelo monaquismo, criando até com Rufino e outro companheiro, Cromácio, uma experiência de vida cenobítica. Rompe então os laços com a família e decide enveredar definitivamente pela vida consagrada.

Ao contrário dos pobres refugiados da actualidade, sai da Alemanha e parte para a Trácia (Norte da Grécia), vai para a Ásia Menor (Turquia) e daqui para o deserto da Síria. Ali viveu, na região a leste de Antioquia, como eremita, experiência que não lhe agradou, sem descobrir a paz. Ali se ordenou sacerdote também, mas acabou por voltar à Europa. A Itália, onde o Papa Dâmaso I (366-384), aconselhado por bispos, o nomeia seu secretário, na sequência da impossibilidade, por doença, de São Ambrósio de Milão. Encarregado de redigir as cartas que o Pontífice enviava, os seus dotes revelaram qualidades exponenciais, tendo sido designado para realizar a tradução da Bíblia. As traduções da Bíblia que existiam nesse tempo tinham muitas imperfeições de linguagem e várias imprecisões ou traduções não muito exactas. Jerónimo, fluente e elegante no Latim, traduziu este idioma, “a língua vulgar”, toda a Bíblia, designada assim por “Vulgata” (ou tradução feita para o “povo” ou “vulgo”), a partir de fontes aramaicas e hebraicas, além de gregas e noutras línguas, num trabalho mais completo e coerente, homogéneo, que as Bíblias então em uso. A Vulgata de São Jerónimo foi a “Bíblia oficial” da Igreja Católica durante perto de quinze séculos, até à sua revisão no séc. XX.

Começou-a em 382, mudando-se para a Terra Santa, para Belém, para melhor aprender o Aramaico e o Hebraico. Roma também não lhe oferecia estabilidade, apesar dos seus cargos e estatuto. A inveja e a calúnia imperavam na Cidade. Por isso, Belém tornou-se lugar de paz. E de trabalho! Em 390 já tinha pronta a revisão do texto latino do Novo Testamento, começando a tradução do Antigo, este mais centrado no Hebraico e Aramaico, que já dominaria. Completou esta tradução em 405. Mas continuou a trabalhar na teologia e exegese bíblicas, com comentários e revisões. Além disso fundou um mosteiro dúplice em Belém, ou seja, com uma comunidade masculina, por ele inspirada, e outra feminina, dirigida por Santa Paula, filha de São Eustóquio, ou Fabíola de Roma. O mosteiro foi erigido graças às doações de ricas mulheres romanas que procuravam a sua direcção espiritual em Belém, as quais se juntaria Paula na comunidade monástica feminina. Não mais sairia da Terra Santa, pregando, aconselhando, dirigindo espiritualmente as comunidades monásticas. Vivia como um eremita na Cova (gruta) do Presépio, a todos atendendo.

Escrevia ainda contra as heresias, de forma resoluta, estribado no conhecimento que detinha das Sagradas Escrituras e da exegese dos textos, além da Teologia. A sua vida inspirou eremitas e também comunidades monásticas, como a ordem religiosa contemplativa, de clausura, que lhe leva o seu nome, fundada no século XV em Espanha, seguindo-lhe o exemplo e forma de vida. A sua legenda tornou-se famosa, muitas vezes até tornado cardeal, o que é irreal, pois esta dignidade eclesiástica apenas surgiu no séc. XI. Mas Jerónimo é acima de tudo o símbolo da tradução das Sagradas Escrituras. Morreu em 30 de Setembro do ano 420, com 80 anos, sendo comemorado em quase todas as Igrejas Cristãs.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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