Fortaleza de fé para mais uma década
As relíquias de São Francisco Xavier estiveram expostas na Sé Catedral de Goa, entre os dias 21 de Novembro de 2024 e 5 de Janeiro de 2025. Calcula-se que perto de seis milhões de peregrinos se terão deslocado a Velha Goa para ver os restos mortais do Apóstolo das Índias, acto que apenas é possível concretizar a cada dez anos. O CLARIM esteve lá e testemunhou um dos maiores actos de fé do mundo, tendo recolhido o testemunho do presidente do Comité para a Exposição das Relíquias, padre Henry Falcao, do reitor da Basílica do Bom Jesus, padre Patricio Fernandes, SJ, e de um voluntário leigo. «Renovação da vida pessoal, da vida familiar e da responsabilidade social dos católicos para com a sociedade» foi o objectivo comum traçado pelo arcebispo de Goa e Damão, cardeal D. Filipe Neri Ferrão, para três momentos diferentes: exposição das relíquias, Natal do Senhor e Jubileu de 2025.
A peregrinação começa bem cedo, por duas razões: mesmo no Inverno, o calor é nota dominante no Estado do Goa; e fomos avisados ao longo de vários dias para a quantidade de fiéis, turistas e outros curiosos esperados em Velha Goa.
Vários quilómetros percorridos, somos obrigados a estacionar o automóvel num extenso parque improvisado para o efeito e a tomar um pequeno autocarro que nos leva para uma espécie de Santuário. Em grande destaque, a Sé Catedral de Goa – dedicada a Santa Catarina de Alexandria – e a Basílica do Bom Jesus.
Interdita a automóveis e outros veículos privados, a área é percorrida a pé, sendo que por estes dias foi colocado um passadiço de acesso à Sé Catedral, onde até 5 de Janeiro estão expostas as relíquias de São Francisco Xavier. Ao longo do passadiço encontram-se penduradas ilustrações e fotografias de vários santos, entre as quais sobressai Carlo Acutis, o primeiro santo da geração “millennial”.
À porta da Sé somos recebidos pelo padre Henry Falcao, presidente do Comité para a Exposição das Relíquias de São Francisco Xavier.
Dada a hora madrugadora, a fila de espera ainda não chega ao adro da igreja, pelo que a passagem no detector de metais é feita a passo acelerado. Se no exterior há cânticos e outros sons provenientes de diferentes quadrantes, no interior da Sé reina o silêncio.
Num misto de entusiasmo e nervosismo, seguimos o padre Henry até junto do altar-mor, pelo lado esquerdo da nave central, que começa progressivamente a encher de pessoas à medida que os minutos vão passando. A pedido do padre Henry, um segurança autoriza-nos a chegar perto da urna de vidro onde repousa o corpo incorrupto de São Francisco Xavier. Sem hesitar, tocamos com as mãos ao longo do lado esquerdo da urna, a única barreira física entre o Santo e os peregrinos.
Por estar familiarizado com estes momentos, o padre Henry apenas nos volta a dirigir a palavra alguns minutos depois, deixando-nos recuperar do turbilhão de emoções em que estamos mergulhados. Enquanto isso, mais pessoas vão dando entrada na Sé. Há quem com crucifixos e terços nas mãos se ajoelhe e reze em veneração ao “Santo de Goa”.
De regresso ao adro da igreja, o padre Henry Falcao recorda a mensagem do arcebispo de Goa e Damão, cardeal D. Filipe Neri Ferrão, acerca da exposição das relíquias. «O principal propósito da exposição é a renovação da vida pessoal, da vida familiar e da responsabilidade social dos católicos para com a sociedade. Nos últimos dois anos, a Arquidiocese esteve a preparar-se espiritualmente para este evento», diz, acrescentando: «Este final de ano [2024] é muito especial, pois nestes dias coincidem a exposição das relíquias, o Natal e o início do Jubileu de 2025. O Natal é um tempo de riqueza espiritual para as famílias e para quem vem do estrangeiro – goeses que vivem noutros lugares e em diferentes países. É também tempo de férias em família, após vários meses de trabalho. É um período maravilhoso para todos nós. Para os cidadãos goeses, é um tempo abençoado».
Até 17 de Dezembro passaram pela Sé de Goa «mais de dois milhões de visitantes», tendo a organização previsto a afluência de quase seis milhões até 5 de Janeiro, o último dia da iniciativa. Para além de goeses e naturais de outros Estados da Índia, deslocaram-se até Velha Goa cidadãos da Indonésia, Japão, Malásia, Portugal (contou-se com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros português), Espanha (país-natal de São Francisco Xavier), Itália e França.
Aos vinte membros do Comité Organizador, juntaram-se cerca mil e 500 voluntários, entre os quais «muitos jovens, estudantes e pessoas de meia-idade». Em termos práticos, foram constituídos subcomités com vista a preparar a exposição das relíquias; uma mostra dedicada à vida de São Francisco Xavier; à gestão dos voluntários; à relação com os Media, entre outras áreas. «Acima de tudo, estamos a falar de pessoas que trabalham com muito empenho para que este evento seja espiritualmente frutuoso para todos os nós», refere o sacerdote, sublinhando ainda: «Perguntam-nos com alguma insistência porque não expomos as relíquias mais frequentemente. A verdade é que não há razão para apenas o fazermos de dez em dez anos. Acontece que é uma tradição da Arquidiocese e nós cumprimos essa tradição. Se o fizéssemos com maior frequência, tornava-se corriqueiro e perdia importância e significado».
Findo o período reservado à exposição pública das relíquias e ao Natal, as atenções irão estar definitivamente centradas no Jubileu de 2025: «A par do Comité para a Exposição das Relíquias, o arcebispo criou um segundo comité com vista à celebração do Jubileu. Ambos estão em funções há dois anos, tendo o segundo começado por coordenar a participação de Goa e Damão no Sínodo dos Bispos. Na realidade, desde o primeiro dia que vimos trabalhando em conjunto, pois encaramos todos estes eventos como se tratando de um só. No centro do Jubileu está Cristo e São Francisco Xavier só tem a importância que tem porque seguiu os ensinamentos de Cristo, tornando-se também ele um modelo para os homens. Para 2025 temos agendadas muitas actividades espirituais para celebrar o jubileu de prata deste milénio».
GUARDIÃO DAS RELÍQUIAS
Membro da província jesuíta de Goa há mais de cinquenta anos, o padre Patricio Fernandes, SJ, é o reitor da Basílica do Bom Jesus, onde os restos mortais de São Francisco Xavier repousam durante os quase dez anos que medeiam as exposições das relíquias. Daí ser apelidado de “Guardião das Relíquias”.
«Sinto-me muito pequeno perante a responsabilidade de ser o guardião das relíquias, por várias razões: Primeiro, porque se trata de um corpo sagrado. Segundo, porque recebemos diariamente milhares de pessoas. E terceiro, porque temos de garantir a segurança das relíquias e da Basílica. Uma preocupação constante é manter o decoro por parte de quem nos visita e assegurar a melhor experiência espiritual para os fiéis. Neste último aspecto temos muitos planos, mas para os implementar é preciso uma máquina bem afinada», explica o padre Fernandes a’O CLARIM. E revela: «A Basílica é um dos lugares mais visitados pelos turistas e o Governo [de Goa] até já tentou convencer-nos a cobrar bilhete de entrada. Não o queremos fazer, pois isso traria ainda mais responsabilidades. Consideramos que o mais importante é contribuirmos para que os fiéis tenham uma experiência fantástica».
O aumento do número de visitantes, as transformações urbanas em redor da Basílica do Bom Jesus e da Sé Catedral, e a actual situação ambiental resultante do crescimento económico do Estado de Goa, são novos desafios com que a equipa chefiada pelo padre Fernandes tem de lidar. Ainda assim, o sacerdote mantém-se confiante na preservação das igrejas e das relíquias. «Em quase quinhentos anos o corpo tem enfrentado muitas adversidades ao nível do clima. Recordo, por exemplo, que houve épocas em que chovia torrencialmente. Depois há a questão da qualidade ambiental, com o aumento da poluição e das poeiras, hoje mais agravado devido à construção de novas estradas ao redor de Velha Goa. Muitas vezes sinto que devíamos fazer mais, mas há um elemento divino que não pode ser descurado, o que nos leva a questionar se algumas medidas seriam realmente eficazes. Dou-lhe um exemplo: nas últimas décadas, o corpo passou a estar dentro de uma urna de vidro, onde não consegue arejar. Depois disso, várias pessoas relataram que viram o Santo suar». Mais, continuou o raciocínio, «já testemunhei em três ocasiões a descida do corpo, da urna onde repousa, para o solo da Basílica. Em todas elas a pele continuava presa aos ossos e o corpo mantinha a mesma forma. Daí que também tenhamos receio de alterar o ambiente em que as relíquias se encontram. Quem nos pode aconselhar sobre o que fazer? Houve uma época em que contactei com várias empresas italianas. Perguntámos se deveríamos manter o corpo numa urna fechada ou alterar a temperatura. Na realidade, continuamos sem saber como proceder».
Questionado sobre o número de peregrinos que anualmente visita a Basílica do Bom Jesus, o padre Fernandes responde: «Não lhe sei dizer quantos visitantes recebemos por ano. Já diariamente, o número varia entre cinco e 25 mil. Vêm conduzidos pela fé, para agradecer milagres ou por mera curiosidade. Também há quem participe nas duas missas diárias por nós celebradas – uma em Konkani e outra em Inglês».
UM VOLUNTÁRIO PARA TODA A OBRA
DarryInn D’Souza é voluntário na Basílica do Bom Jesus desde 2020. «Nesse ano “começou” o Covid e as missas foram suspensas. Contudo, sempre que a Basílica estava aberta ao público, ajudava os fiéis no que necessitassem», começa por explicar ao nosso jornal, adiantando: «Tratou-se de um chamamento de São Francisco Xavier. Há muitos anos que participava nas novenas, onde sempre ajudava a encaminhar os fiéis para a Missa, e um dia senti que era o momento de o fazer de forma mais abnegada. Este é um ano especial e eu aqui estou!».
Durante a exposição das relíquias, o serviço de voluntariado é reservado aos cidadãos entre os dezoito e os 65 anos de idade, dada a exigência física das actividades a executar: «Todos os dias trabalhamos entre as 5 horas e 30 da manhã e as 7 horas e 15 da tarde. Estamos divididos por tarefas – uns são responsáveis pela gestão das filas de espera, outros por encaminhar os fiéis para o confessionário ou pelas visitas à Arte Sacra. Há também voluntários exclusivamente dedicados aos idosos e inválidos, e às famílias com bebés e crianças».
Dificuldades – perguntámos – «não há a registar». «Há muito respeito entre todas as pessoas. Mesmo quem vem de outras partes do mundo, respeita e não agride. O problema são as fotografias – refere com um sorriso nos lábios –; é proibido mas a vontade é mais forte…».
A concluir, DarryInn D’Souza realça a presença no local de «dois médicos voluntários, permanentemente auxiliados por motocicletas-ambulância» e «a ajuda dos bombeiros e dos serviços de saúde de Goa».
José Miguel Encarnação
em Velha Goa (Índia) com a colaboração da Fundação Oriente