Paradigma da humildade na acção
Na semana passada falámos de misericórdia, de perdão, a propósito do próximo Ano Santo. Hoje vamos falar de humildade. Na pessoa de quem nasceu rico e poderoso, num castelo, mas que viveu no exemplo da pobreza e da caridade. Alguém que morreu a dizer a Deus «já vou, já vou»…
São Carlos Borromeu, nascido a 2 de Outubro de 1538, no castelo de Arona, nas belas margens do Lago Maior, no Norte de Itália, era nobre de elevada cepa, filho do conde de Arona, Gilberto Borromeo, e de Margarida de Médici, irmã do Papa Pio IV Médici (1559-65), o pontífice que encerrou o grande Concílio de Trento (1545-63).
Carlos significa “homem prudente”. Encaixa-se perfeitamente neste filho do conde de Arona, o terceiro dos seus seis filhos. Inteligente podia ser também um qualificativo seu. Cedo começou a estudar Latim, em Milão, passando em 1522 para a Universidade de Pavia, onde se graduou em Direito, “in utroque iure” (“em ambos os direitos”, civil e canónico). Estava-se em 1559. Um ano depois, seu tio, recentemente eleito Papa, Pio IV, chamava-o para Roma, para ser seu secretário e administrador dos Estados Pontifícios. Carregou o sobrinho de honras e benesses, elevando-o a cardeal com apenas 21 anos, em Janeiro de 1560. Ainda se viviam tempos conturbados, o nepotismo ainda vingava, favorecimentos e carreirismos eclesiásticos. D. Carlos, nestes primeiros anos de vida eclesiástica, não era senão mais um clérigo em rápida ascensão, para mais nobre e sobrinho directo de um Papa.
Curiosamente, foi cardeal protector de Portugal, como também dos Países Baixos e dos cantões católicos suíços, além de várias ordens religiosas. Fora tonsurado com sete anos e com doze recebeu a comenda (conjunto dos usufrutos, rendas, títulos) de uma abadia. Bem, era mesmo mais um típico clérigo nobre da carreira eclesiástica, tendo até fundado uma sociedade literária, designada como “As Noites Vaticanas”. Mas não. Não foi por esse registo que enveredou, seria até mais fácil, honorável e rentável ir por aí. Mas não foi mesmo.
Uma tragédia ajudou o jovem cardeal a mudar os azimutes. Morreu-lhe o pai, o que o tornava titular da sua família e do respectivo património e rendas. Mas em 1562 falecia o seu irmão. Carlos tinha que decidir: ou casar-se para dar descendência à sua casa e estirpe, ou prosseguir a sua carreira eclesiástica. Decidiu-se pela vida religiosa, pela mais estrita, mais rigorosa. Ainda pensou seguir uma vida consagrada, contemplativa, ascética, mas não o concretizou. Até quando mais tarde era já arcebispo quis seguir esse intento, mas D. Frei Bartolomeu dos Mártires, seu amigo e arcebispo de Braga (Portugal), o dissuadiu para que se dedicasse à sua diocese. Ordenou-se sacerdote em Agosto de 1562. Um ano depois era já arcebispo de Milão, combatendo a Reforma Protestante e promovendo os ideias e disposições emanados pelo Concílio de Trento, recém-encerrado. A luta pela Reforma Católica foi um dos desígnios deste jovem arcebispo de Milão. Promoveu alterações nos livros litúrgicos, em conformidade com o concílio, bem como na música religiosa, sendo D. Carlos um músico, pois tocava alaúde e violoncelo, tendo mandado executar a Missa do Papa Marcelo (composta por Palestrina, em 1555 ou 1562).
O papel de D. Carlos como reformador activo e empenhado da Igreja ganhava cada vez mais forma e sentido, para se tornar na “marca de água” da sua vida e uma das razões da sua santidade. Neste desígnio, foi activíssimo, principalmente na sua arquidiocese de Milão, onde a sua grande acção como arcebispo promoveu nada mais que seis concílios provinciais e onze sínodos diocesanos, nos quais elaborou um sem número de textos normativos que difundiram os ideais promulgados pelo concílio. Foi o primeiro prelado a fundar seminários para a formação dos futuros padres, cujo modelo foi imitado, tal como os regulamentos; promoveu os escritos catequéticos e fomentou o conhecimento da doutrina católica.
Incansável, fundara mesmo o primeiro seminário tridentino, em Milão, designando jesuítas para o dirigirem. Corria o ano de 1564, tinha chamado trinta sacerdotes da Companhia de Jesus para o ajudarem a implementar a reforma tridentina na sua arquidiocese. Em 1578 fundou uma congregação, os Oblatos de Santo Ambrósio, a quem confiou em 1579 o seminário fundado quinze anos antes. O seu objectivo era o de conferir uma formação sólida ao clero milanês, que quis reformar também, de forma pioneira. Além de disciplinar as casas religiosas, por exemplo, exigiu maior severidade e rigor no cumprimento dos deveres cristãos. Criou ou reanimou muitas confrarias e congregações religiosas em Milão, em especial a Companhia de Santa Úrsula, fundada em Brescia por Santa Ângela de Merici. Esta congregação, como outra de Santa Ana, foram especialmente recomendadas por D. Carlos para que os visitadores das quinze dioceses sufragâneas nelas as introduzissem, principalmente nas grandes cidades.
Grande reformador, não deixou porém de suscitar críticas e invejas, até sofrendo agressões físicas, como a que o clérigo Farina, dos Humilhados (fraternidade religiosa) lhe fez, quando Borromeu orava.
«Quem poupa a sua vida, perde-a; mas o que gastar a sua vida por Mim, a ganhará», estas palavras de Cristo incendiaram o espírito de São Carlos, norteado pela humildade, que atendia a todos, principalmente aos mais pobres, vivendo perto deles, procurando-os, apoiando-os, consolando-os, espiritual e materialmente, sem luxos. Sendo ele de origem nobre, riquíssimo, era exigente e severo consigo, e amigável e atento, mas exigente, com os seus colaboradores; compreensivo com os necessitados. «Um bispo demasiadamente cuidadoso com a sua saúde, não conseguirá chegar a santo, dizia, e a todo o sacerdote e apóstolo deverão sobrar-lhe trabalhos para fazer e nunca ter tempo de sobra para perder». As suas correrias pastorais, dir-se-ia assim, eram inúmeras, a todos acudia, principalmente aos pobres e aos desfavorecidos, aos doentes, aos empestados. Bento XVI definiu-o com o um «modelo de pastor exemplar pela caridade, doutrina, zelo apostólico e, sobretudo, pela oração». Morreu jovem, em 1584, em Milão, vítima de si próprio, do imenso trabalho e actividade pastoral, nada dando a si próprio, antes tirando em esforço e canseira.
Figura emblemática da Igreja, foi canonizado por Paulo V em 1610.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa