Santa Luzia
Quando viu Luzia a luz do dia? Pensa-se que terá sido no ano de 283, em Siracusa, na Sicília, numa família aristocrática da ilha. Um ano antes de Diocleciano, imperador romano, ascender ao poder. Afinal, aquele que ordenou uma das maiores perseguições aos cristãos, em 304, talvez das mais fulminantes, que esteve na origem do martírio da santa de que hoje falamos, Lúcia, ou Luzia, como é mais conhecida em Portugal. Luzia, de luz, de visão, de olhos… Em 304, de facto, esta jovem siciliana testemunhou com a vida a sua fé, que não renegou, perante os esbirros de Diocleciano, seus carrascos. Virgem e mártir, como Cecília, Margarida de Antioquia, Catarina de Alexandria, Inês ou Ágata (Águeda), faz parte, com estas jovens donzelas mártires do Cristianismo, das santas de maior expressão cultual ao longo da história da Igreja.
Foi a 13 de Dezembro, também na sua Siracusa natal, que Luzia coroou a sua fé com a glória do martírio. Na mesma cidade onde viveu, entre 287 e 212 a.C., Arquimedes, o maior cientista da Antiguidade, o físico e matemático que inventou e usou o célebre “raio de calor”, através de reflectores parabólicos, para atingir e queimar os navios que cercavam a sua Siracusa. Arquimedes também foi morto por um soldado romano, contra ordens superiores para que não o ferissem, pela grande admiração que os romanos por ele nutriam. 502 anos depois, a bestialidade humana, perseguidora e intolerante, na cidade que foi altar da ciência com Arquimedes, com Luzia a transformou no altar do sacrifício de alguém que apenas… amou, teve fé e se consagrou a um ideal. Os verdugos de Diocleciano a castrar a fé, como cinco séculos antes aniquilaram o conhecimento. Da luz de Arquimedes à luz de Luz(ia), ou Lúcia, nome que vem do Latim lux (luz). Ou a luz do conhecimento e a luz da fé no altar da hediondez facínora da incúria assassina.
É importante recordarmos estas figuras, como Luzia, ou Lúcia, e as outras jovens mártires. Hoje que tanto se fala na indiferença de boa parte da juventude, sem ideais ou a sucumbir à dependência digital e ao facilitismo materialista do peixe dado em vez de ensinado a pescar, sem causas, podíamos reflectir sobre Luzia, por exemplo. E senhor leitor, permita-me convidá-lo a retirar as suas próprias conclusões. Ou reflexões. Senão, vejamos.
Luzia nasceu num berço dourado. Rica. Muito bonita, formosa, revelam as fontes coevas. Órfã de pai aos cinco anos, cedo experimentou o fel da provação da ausência de alguém especial, entregue que ficou a sua mãe, Eutíquia, senhora nobre, mas doente, frágil. Cristã, convicta, a jovem Luzia nutria especial devoção por outra mártir siciliana, de Catânia, Ágata (assassinada em 5 de Fevereiro de 251 ou 254), a quem os verdugos chicotearam e depois arrancaram os seios com tenazes, queimando-a depois, vindo a morrer na prisão. O seu túmulo era pois assaz visitado. E ali Luzia experimentou um êxtase. Em ascese, teve uma visão de Ágata, a quem pediu a cura de sua mãe. Pouco depois, no regresso, contou tudo a sua mãe, senhora piedosa também. Revelou ainda à progenitora que prometera em segredo manter a sua virgindade e consagrar-se a Cristo, renunciando o matrimónio. Eutíquia acolheu com fé e carinho o voto da filha. Ambas decidiram então materializar a sua fé e caridade, distribuindo os seus imensos bens pelos pobres de Siracusa. A sua beleza e fortuna não passavam despercebidos aos jovens casadoiros da região. Porquê tal renúncia?, perguntaria um jovem rico, mas pagão, a Eutíquia. «Porque Luzia encontrou bens muito mais valiosos que os que tem», respondeu a mãe. O jovem, mais tarde, vendo tamanha fortuna ser distribuída pelos pobres siracusanos, desconfiou que a jovem que tantas recusas lhe dava, deveria ser afinal… cristã!
Logo foi denunciá-la a Pascácio, cônsul que governava a cidade como prefeito. Despeitado, o jovem, por ter sempre sido prometido à bela e rica Lúcia. A qual o recusou, como aos bens terrenos, optando pelos bens celestiais e a eternidade. O cárcere torpe e vil foi o destino de Luzia, claro, na vaga das perseguições de Diocleciano aos cristãos por todo o império. Foi confrontada em tribunal com Pascácio, sob o olhar acusador do jovem que achava que seria um dia seu esposo. Um “amor” vão… Luzia optou pelo amor a Cristo. Pascácio ordenou então que a atirassem para um prostíbulo, para que a violassem até morrer. Mas sem êxito. Resistiu. Violentaram-na, queimaram-na, mas Luzia firme lutava, indómita e abnegada. A decapitação foi a sua pena, a sua forma de martírio, depois de tanto sofrimento. Mas não em vão, como o “amor” que lhe oferecia o seu… jovem delator.
Criou-se depois a lenda, popular, pela fama de santidade da jovem mártir – em virtude de seu nome, Luzia, de luz (relativa à visão) – de que o seu martírio fora através da extracção dos seus olhos, viva… Os olhos numa bandeja são aliás o seu atributo iconográfico, que a acompanha nas suas representações artísticas até hoje, sendo por isso padroeira da vista e dos oftalmologistas. Mas foi na verdade decapitada, Luzia, porque viu a “luz” verdadeira, não a vil luz do ouro e da prata, ou do falso “brilho” de jovens como o seu pretenso noivo. Como Arquimedes, Luzia procurou a luz… Luzia encontrou-a, na plenitude do sacrifício supremo da dádiva da vida!
Vítor Teixeira
vteixeira@porto.ucp.pt
Universidade Católica Portuguesa