O nosso tempo

Reconciliar… com discrição

Ou “a normalização diplomática entre os Estados Unidos e Cuba” – que poderia constituir título alternativo para esta crónica.

Há dias soube-se que presos americanos, há muito detidos pelo regime dos Castros, foram libertados e regressaram ao seu país, de acordo com as etapas negociadas da normalização de relações em curso entre Washington e Havana.

Algumas referências, poucas, mencionaram que, particularmente nesta dimensão humanitária do processo, houve intervenção do Santo Padre. E que uma promessa de libertação foi feita pessoalmente ao Papa pelas autoridades cubanas.

Não sei se isto foi exactamente assim, mas a fonte a que me refiro foi o porta-voz da Casa Branca, em princípio bem informado sobre os detalhes da negociação.

Um pouco de História:

As relações entre a Sé de Roma e o Governo de Havana conseguiram resistir, certamente com altos e baixos, através do último meio século, não obstante o difícil contexto da Guerra Fria, a hostilidade dos Estados Unidos e o isolamento internacional do novo regime socialista.

E posso invocar de memória a presença de João Paulo II em solo cubano, dirigindo-se com uma frontalidade não ofensiva ao líder revolucionário, internacionalmente aclamado pela sua luta de anão contra o gigante, recriando assim, no século XX, a versão profana do combate bíblico desigual entre David e Golias…

Dessa relação antiga entre a Igreja Católica e um Estado laico (e ideologicamente hostil à religião) ficaram frutos de credibilidade e respeito mútuo que agora frutificam nesta negociação discreta, aproximando adversários, em princípio irreconciliáveis.

Pouca gente poderá dizer quem são os diplomatas do Vaticano, tão discreta é a acção da Santa Sé quanto ao seu relacionamento com os diferentes Governos.

E diria mesmo que, figuras públicas que são, com presença frequente na Comunicação Social, melhor se conhecem os diferentes líderes das igrejas nacionais, bispos, arcebispos ou cardeais, que têm uma ligação directa e permanente às suas respectivas comunidades, sendo por isso interlocutores representativos no diálogo com as autoridades de cada um dos países.

Só para citar o mais recente exemplo desta importância mediática da hierarquia das igrejas católicas nacionais, referirei as declarações do primeiro cardeal birmanês, o ainda arcebispo monsenhor D. Chares Maung Bo que, na sequência da sua ascensão ao cardinalato, alertou para o perigo de, no seu país, Myanmar, a reconciliação nacional estar a ser gravemente comprometida pelo comportamento da maioria budista contra a minoria muçulmana.

É uma afirmação de peso que poderá eventualmente colocá-lo na posição de mediador entre as duas confissões religiosas em conflito.

É que os políticos não são sempre os melhor colocados para este tipo de exercício. Que não releva apenas da correlação de forças entre confissões religiosas em conflito, mas do conhecimento profundo das diferentes dinâmicas sociais de base de que os Governos se podem alhear, se encerrados nas torres de marfim dos gabinetes ministeriais.

Não seria caso inédito de a Igreja Católica poder ser aceite como elemento de aproximação e pacificação entre confissões religiosas desavindas. Na Indonésia, por exemplo, muita da tensão entre a esmagadora maioria muçulmana e a minoria cristã protestante é gerida pela intervenção apaziguadora da Igreja Católica…

 

Um longo historial

A Santa Sé tem um longo historial de sucessos diplomáticos que, sem alarde nem fanfarra, traduzem um capital moral (e político – por que não dizê-lo?) a ser utilizado por “toda a gente de boa vontade”, o que vai dos Governos até aos outros grupos e instituições da sociedade civil.

Podem citar-se, em épocas mais recentes, vários exemplos de diplomacia internacional discreta da Igreja:

Em 1978 teve lugar a reconciliação promovida entre a Argentina e o Chile, graças aos bons ofícios da Santa Sé, evitando-se assim uma guerra sobre ilhas disputadas pelos dois países no canal de Beagle.

1975 – 1990 – Foi esta a duração do destrutivo, mortífero, fracturante conflito interno no Líbano. O Vaticano interveio decisivamente a favor do fim da guerra civil, acentuando-se a delicadeza deste exercício de pacificação por entre as diversas milícias ou grupos confessionais rivais armados.

No Congo e em Moçambique é conhecida a intervenção da Igreja a favor da paz e reconciliação nacional, sendo melhor conhecido entre nós o da Comunidade de Santo Egídio no papel de mediação bem sucedida entre Frelimo e Renamo.

Exemplos de heroísmo entre núncios apostólicos (os embaixadores da Santa Sé) são bem conhecidos, como o do arcebispo D. Michael Courtney que foi assassinado no Burundi em 2003 e o arcebispo D. Fernando Filoni que foi núncio em Bagdade e exerceu depois funções como número dois da Secretaria de Estado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Santa Sé.

As intervenções múltiplas do Papa Pio XXII durante a Segunda Guerra Mundial, para proteger perseguidos judeus, apontam-se como exemplo destas iniciativas da Igreja em tempo de conflito ou para ajudar a solucionar candentes questões internacionais fazem sem dúvida parte do seu património espiritual.

 

Treinados para ser discretos

O Papa João XXIII – foi núncio apostólico na Turquia – ensinava que o diplomata da Igreja tem que ser discreto, ser reservado (saber falar pouco…) e a manter sempre o “low profile”. Em contraste portanto com a maior parte dos seus colegas laicos…

E o Papa Angelo Roncai aconselhava outra coisa: uma vez que a carreira diplomática da Santa Sé é constituída exclusivamente por sacerdotes – o diplomata deve ser um sacerdote antes de tudo. O que o não confina à lógica de interesses de Estado – que o Vaticano também é… mas diferente.

Se neste princípio de 2015 podemos prestar pois homenagem à intervenção discreta da Santa Sé na reaproximação Washington – Havana, é porque o sucesso da negociação alterou um dos capítulos significativos, em termos simbólicos e não só, da História que vamos todos escrevendo.

Carlos Frota

Universidade de São José

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