Sangue, suor e amizade

O rumo traçado em St. Martin foi praticamente seguido à risca, sendo que o motor foi usado quase na totalidade da viagem para Guadalupe. Por muito que tentasse recorrer às velas os ventos, que deveriam ter rodado de Sudeste para Este, recusaram-se a cooperar, pelo que não foi possível passar sem o motor.

Saímos da baía de Marigot num Domingo e chegámos a Point-à-Pitre (Guadalupe) numa quarta-feira ao meio-dia – foram cerca de 200 milhas náuticas, em que 80 por cento do percurso foi cumprido com o motor ligado. As velas apenas foram içadas no lado oeste da ilha de Montserrat, contra todas as recomendações que aconselham a não passar por essa zona, devido às cinzas e gazes do vulcão que se encontra activo.

A verdade é que tencionávamos parar na ilha para comprar gasóleo – até ali a viagem delapidou todo o combustível – mas quando lá chegámos, perto da meia-noite de segunda-feira, o vento mudou, pelo que optámos por içar todas as velas e seguir com o motor desligado. Cumprimos as 30 milhas que permeiam as costas de Montserrat e Guadalupe em pouco mais de cinco horas. Assim que chegámos perto da ilha os ventos “morreram” e fomos obrigados a ligar novamente o motor. Já perto da costa voltámos a içar as velas, pois os últimos litros de combustível tiveram de ser poupados para a entrada no porto de Point-à-Pitre.

A chegada ao arquipélago de Les Saintes, a última marca de navegação antes do destino final, deu-se na terça-feira ao final da manhã. Desde aí, até ao final da manhã seguinte, fomos lutando contra o vento e a corrente. O avanço foi penoso e bastante desconfortável. A noite que antecedeu a quarta-feira foi passada a mudar constantemente de bordo, para que conseguíssemos percorrer as últimas 15 milhas que precedem o canal de navegação que leva ao porto comercial da ilha.

Quando faltavam cerca de cinco milhas decidimos ligar o motor, sabendo nós de antemão que da última vez já havia parado pelo facto do combustível estar na reserva e muito sujo, em resultado do mar alteroso ter agitado as impurezas que se vão acumulando no fundo do depósito. A primeira tentativa foi infrutífera, mas depois de limparmos os filtros e sangrarmos o motor este voltou a funcionar já com o mar mais calmo. À cautela, arriscámos entrar no porto à vela, guardando o motor para ancorar o barco. Os momentos que antecederam a entrada no canal foram bastante tensos, pois tivemos de passar por uma zona com rebentação a bombordo e uma zona baixa a estibordo. Depois de muita ansiedade o obstáculo foi ultrapassado, o que trouxe boa disposição a bordo, proporcionando a todos uma chegada mais animada.

Para nossa surpresa, depois de ancorarmos, descobrimos que o nosso amigo José Viegas, do veleiro Joly Breeze, estava ao nosso lado. O José é um professor reformado de Setúbal, que leccionou no Instituto Superior Técnico de Lisboa e que agora passa os dias a navegar com a esposa, de origem brasileira.

Chegarmos a um local e encontrarmos pessoas conhecidas depois de termos passado vários dias de mau tempo e mar alteroso fez com que a nossa disposição tivesse melhorado ainda mais, tendo os problemas ficado para trás.

Os quatro dias de navegação foram duros para a tripulação e para o veleiro mas, mesmo assim, os danos foram mínimos. Apesar de tudo, apenas temos a contabilizar um pequeno rasgo na vela principal, que resultou de um descuido. Já foi reparada e está pronta a ser utilizada, embora tenhamos de ter mais atenção e cuidado no futuro.

Depois da chegada, foi tempo de descansar e colocar o barco em ordem – dois dias inteiros a arrumar material e a lavar roupa, para além de termos comprado água e algum gasóleo, e mudado os filtros de combustível e o óleo do motor.

Na quinta-feira, o casal luso-brasileiro convidou-nos para jantar no seu veleiro, com a refeição a servir para metermos a conversa em dia e recordarmos os tempos que vivemos em Martinica, onde nos conhecemos no ano passado. Por essa altura estava eu a navegar com a Maria, enquanto a NaE se encontrava a trabalhar em Macau.

No sábado, ao final da tarde, chegaram os nossos amigos de Portugal, ainda a tempo de saltarem para a água antes do jantar e assim experimentarem, pela primeira vez este ano, as águas tépidas das Caraíbas. O Domingo começou com um mergulho logo pela manhã, depois do pequeno-almoço, e de seguida fui às bombas de gasolina da marina comprar gasóleo e água. Enquanto esperava acabei por fazer de enfermeiro ao coser a mão de um jovem americano que acabara de se cortar com uma garrafa de cerveja. Estava a abastecer o seu veleiro para dar início à travessia do Atlântico, rumo aos Açores, quando decidiu abrir umas cervejas. Um dos gargalos partiu e fez um golpe de quase três centímetros. Como nenhum dos amigos (um coreano e um brasileiro) sabia o que fazer, pediram-me que os ajudasse. A intervenção fez-se no poço do barco. Felizmente não cortou qualquer tendão, nem veias na mão, pelo que a sutura foi rápida e simples. A tarefa foi ainda mais facilitada por terem a bordo um agrafador, sendo que não foi necessário o uso de agulha e linha. Depois de estabilizado e desinfectado, pedi ao proprietário das bombas de gasolina que chamasse um médico para que observasse o ferido, receitasse antibióticos e decidisse se estaria capaz de prosseguir viagem.

Foi a primeira vez que “dei pontos” com um agrafador cirúrgico. Estou a pensar adquirir um para ter a bordo; facilita a sutura e pode ser utilizado pela próprio acidentado.

A vida a bordo tem destas particularidades. Somos obrigados a aprender determinadas tarefas como, por exemplo, suturar cortes sem treino médico.

Os próximos dias vão ser passados entre Point-à-Pitre e o ilhote de Gosier, a fim de que os nossos amigos de Portugal possam desfrutar de alguma praia.

JOÃO SANTOS GOMES

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