O povo que ouve o arroz a crescer
Continuamos esta semana ao Laos, um pequeno país enclausurado entre montanhas e rios, com naturais e compreensíveis ressentimentos históricos. Uma visita numa época em que o País abria as suas portas ao turismo internacional, após décadas de isolamento. Nem mesmo um ressentimento histórico, perpetuado de geração em geração, era capaz de resistir à realidade dos tempos.
Já não estávamos na Idade Média (época de renhidas lutas com o vizinho reino do Sião) e a Tailândia dos anos 90 do século passado, mesmo com a crise instalada, possuía capital. Quanto ao Laos, apesar dos recursos hidroeléctricos e das riquezas naturais, ficara, com a derrocada do sistema político-económico dos seus tradicionais aliados do ex-bloco soviético, mais só do que nunca, vendo-se obrigado a abrir as portas à alta finança estrangeira. Essa tendência era bem visível, sobretudo na capital, Vientiane, onde todos os dias abriam galerias comerciais, clubes nocturnos, hotéis, restaurantes e lojas privadas. Demoliam-se antigas moradias para, em seu lugar, se erguerem nos céus as primeiras towers e court gardens, fomentados pelos investidores imobiliários de Hong Kong, Singapura ou de Taiwan. Nas ruas circulavam táxis como os da Tailândia e motociclos japoneses “Made in Bangkok”. Porém, o elo inevitável – que os laosianos viram ser construído, com um misto de receio e fascínio, mas que os “soldaria” definitivamente ao mundo ocidental – surgiria com a conclusão do último troço da ponte sobre o Mekong, que liga a Tailândia ao Laos, o principal ponto de entrada nesse país. Uma ponte construída pela engenharia australiana, “Ponte da Amizade”, que pouco depois da inauguração passara a ser apelidada “Ponte da SIDA”.
OUVIR O ARROZ A CRESCER
Os laosianos são gente tranquila e contemplativa que vive a um ritmo intemporal. Parecem ter nascido para cultivar a felicidade. Com o fim de os “educar”, os franceses importaram os vietnamitas. Eles é que foram os contramestres, os carpinteiros, os torneiros, os pedreiros que deram origem ao novo Laos. Há um provérbio indo-chinês que, a propósito destes vizinhos substancialmente diferentes, apesar de à primeira vista muito parecidos, diz mais ou menos o seguinte: “Os vietnamitas plantam o arroz, os khmers tratam dele e os laosianos ouvem-no crescer”.
Em contraste absoluto com os seus laboriosos vizinhos vietnamitas, ou até mesmo com o bem tranquilo povo do Camboja, os naturais do Laos manifestavam uma pachorra impressionante. Entrava-se numa repartição pública, ou num escritório de uma empresa privada, e mal se escutavam os funcionários comunicar entre si, tal era a discrição e tão baixo o tom de voz. E não agiam assim por se sentirem constrangidos pelo olhar dos seus superiores, autoridade patronal ou algo do género. Antes pelo contrário, a atmosfera nos locais de trabalho era bem mais relaxada do que no Ocidente.
Nas vilas e cidades, apesar do chinfrim e da movimentação própria do dia-a-dia asiático, o ambiente aproximava-se de autêntica província. E esse doce viver, “de ver o arroz crescer”, era bem mais evidente quando se chegava à capital do País num Domingo de manhã, como aconteceu comigo.
Vientiane, com a maioria dos seus estabelecimentos encerrada, mais parecia uma cidade adormecida. Nas ruas, raras as pessoas, e até as viaturas – sobretudo de marcas japonesas em vez dos automóveis vintage franceses do fim da era colonial – pareciam ter aproveitado o fim-de-semana para fazer gazeta.
Acabado de atravessar a fronteira, procurava um hotel quando, de repente, ouvi uma voz. Virei-me para trás, à espera de uma proposta de alojamento ou algo parecido, mas o homenzinho que vi ao volante de um Citroën digno de museu e que se dera ao trabalho de abrir o vidro para me chamar à atenção, limitou-se a dizer, em Francês, o seguinte:
«– Tenha cuidado, olhe o seu dinheiro! Vai cair ao chão!»
E, de facto, as duas centenas de baths, convertidos em kips na fronteira tailandesa meia hora antes, preparavam-se, sem que desse por isso, para saltar do bolso de trás das calças. Com semelhante cartão-de-visita, é claro que fiquei logo bem impressionado com os laosianos. E quem não ficaria perante um bonito gesto como aquele?
AS MUDANÇAS INEVITÁVEIS
Vientiane era também uma cidade poeirenta. E esse pó vermelho – que os motociclistas tentavam minimizar colocando uma das mãos em frente da boca enquanto a outra segurava firmemente o guiador numa tentativa de evitar os buracos, buraquinhos e buracões que tinham pela frente – mais do que respirado, era mastigado. Havia-o em tal quantidade e entranhava-se de tal maneira que todos os quartos dos hotéis o tinham como fiel companheiro. Na origem desse pó estavam as incontáveis obras que tinham a cidade transformada numa espécie de extenso estaleiro desorganizado, com os trabalhos a fazerem-se a conta-gotas e sem qualquer tipo de tapumes ou sinalização para proteger e alertar o peão, que deveria estar sobretudo atento aos “caterpillars”, aparentemente adormecidos, mas que poderiam entrar em actividade a qualquer momento.
«– Os laosianos têm um conceito de trabalho completamente irrealista», afirmava Patrick, um francês casado com uma laosiana. «– Quando começam com obras fazem-no simultaneamente em toda a cidade em vez de irem efectuando os trabalhos por etapas. E depois é o que se vê: obras que nunca mais acabam».
Se chovia, desaparecia o pó, mas então havia que ter cuidado com as inundações e com os buracos de esgoto abertos.
Patrick afirmava ter visto dias antes uma família inteira, «pai, mãe e filha», que viajava de motocicleta, desaparecer numa gigantesca poça de água. Tinha sido após uma chuvada torrencial que alagara a estrada de tal modo que escondera um enorme buraco para melhoramentos de esgotos, aberto na véspera.
«– Foi uma coisa impressionante. A motocicleta fez um pinote e desapareceu sob a água lamacenta e com ela os seus três ocupantes. Quando os bombeiros vieram, limitaram-se a recuperar os corpos, amontoando-os depois nas traseiras de uma carrinha juntamente com a motocicleta. E mais ninguém ouvira falar do assunto a não ser os familiares dos falecidos».
Esse era o tipo de notícias que jamais apareceria nos jornais. Nem pensar. Patrick sabia disso, pois vivia há seis anos no Laos. Preparava-se para abrir um restaurante e apostara, «para já», na importação de vinho da região de Bordéus.
O CAMARTELO CHINÊS
Para ajudar os laosianos com as obras, lá estavam os chineses, pois isso de obras era com eles, como o comprovavam os edifícios cinzentos, erguidos aqui e ali na década de setenta, e que lembravam horrores congéneres na vizinha China. Encarregada de construir o futuro Palácio da Cultura da cidade, uma empresa chinesa da província de Yunnan tinha ao seu dispor um verdadeiro contingente de operários que todos os dias chegavam ao local destinado ao arrojado edifício, em pleno centro da cidade, equipados de fatos-de-macaco azuis e capacetes protectores amarelos. O camartelo trabalhava já de noite e dia. O pessoal encarregado do projecto encontrava-se instalado na “State Ministry Guest House”, uma das mais conhecidas pensões estatais de Vientiane, e os engenheiros tinham ao seu dispor uma sala que apelidavam de Comité de Reuniões. Presumi que na faixa pendurada na obra se referissem a uma “longa amizade entre o povo chinês e laosiano”.
Soube pelos jornais locais que fora recentemente assinado, em Vientiane, um tratado de cooperação, no campo da informação, entre a República Democrática do Povo do Laos e a República Democrática Popular da Coreia, vulgo Coreia do Norte. Ficaria assente na minuta que os dois países iriam “trocar dados através das embaixadas e de delegações de jornalistas, sobretudo no campo das artes”. Só se fosse mesmo nesse domínio, pois não creio que a confiança existente entre ambos desse para trocar informações de carácter mais delicado. Nem em nome de uma suposta e apregoada amizade entre estes dois países comunistas. Era legítimo levantar a seguinte questão: Que matérias iriam ser abordadas? Que informações partilhariam nações que não permitiam aos seus cidadãos inteirarem-se do que se passava no mundo ou no próprio país?
Joaquim Magalhães de Castro