Rússia: Estado e Igreja no combate ao Secularismo

O Presidente e o Patriarca.

Na Catedral de Cristo o Salvador, em Moscovo, observando o mar de peregrinos que afluem a cada instante para rezar. Em pleno século XXI, seria desatenção imperdoável não levar em devida conta este factor no conjunto de mudança da sociedade russa.

Que Rússia é pois a de hoje, para além dos rótulos e dos slogans? Esta é uma questão que se colocam observadores e analistas, mas também o cidadão comum mais atento. Porque a Rússia mudou? E porque as mudanças são complexas e do seu sentido, do sentido dessas mudanças, depende o papel do poder de Moscovo no mundo?

Mas outra questão se coloca logo a seguir, para todos os estudiosos mas também para os cristãos, independentemente da sua origem: qual o significado da reemergência da ortodoxia russa no contexto do Cristianismo à escala global?

E, finalmente, quais as relações entre Estado e Igreja na Rússia dos nossos dias?

O encontro histórico entre o Papa Francisco e Patriarca Cirilo (Kirill) não fez senão aguçar o desejo de encontrar respostas a questões que pareciam submersas ou esquecidas no decorrer dos séculos.

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Se uma recente mas curtíssima estadia em Moscovo, por razões principalmente turísticas, não me converteu em especialista da cultura russa ou da civilização eslava; e se dois ou três passeios na Praça Vermelha não me transformaram em analista qualificado da realidade política do País, ou do seu papel no mundo, actual ou passado, constituiu todavia tal estadia motivo bastante para aguçar em mim, ainda mais, a curiosidade sobre essas matérias.

Sobre uma civilização de que sou – mea culpa – grandemente ignorante. E sobre um povo que, como todos, constrói o seu presente e o seu futuro, nas circunstâncias incertas que caracterizam o nosso tempo.

As pessoas anónimas, em todas as latitudes, navegam, no decurso das suas vidas, através das peripécias de uma História que não escrevem, mas que se lhes impõe, por razões que muitas vezes não compreendem, mas que mudam cruelmente os seus destinos.

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É o olhar sobre as pessoas anónimas, as que não são mero número de estatística e não escrevem a História, que mais nos pode identificar com uma visão cristã sobre a marcha do mundo, tão bem expressa nos comentários e reacções do Papa Francisco aos diferentes acontecimentos que marcam a nossa actualidade, de forma por vezes tão chocante, porque tão desumana.

Nessa visão cada indivíduo é uma Pessoa, uma singularidade, uma promessa – e tem agendado à nascença um encontro com a eternidade.

Na Rússia, como em qualquer outro lugar do mundo – comento comigo mesmo, enquanto passo defronte do Teatro Bolshoi – olhar para os outros é vê-los sem preconceitos, isto é, sem rótulos, sem receios, sem complexos de superioridade ou de inferioridade.

Quanto aos rótulos, penso ainda, a minha geração teve o privilégio de testemunhar transformações históricas de tão grande alcance planetário que os rótulos parece terem desaparecido quase num ápice; e os discursos oficiais deram lugar, porque não mais puderam camuflar, à realidade de sociedades normais, não idealizadas, mas com o bom e o mau de sociedades como todas as outras.

Com pessoas de carne e osso. Com instituições que muitas vezes não desempenham bem o seu papel. E com economias que nem sempre cobrem as necessidades de todos, porque são erradas as políticas ou inqualificados os decisores.

Vivemos assim num mundo para além dos rótulos. Nem anjos nem demónios, mas apenas e só pessoas. E cada pessoa tem um rosto, e cada rosto tem uma história pessoal, e cada memória tem caminhos próprios, só parcialmente partilhados com outros.

A destruição dos grandes clichés do passado teve o mérito de desvendar os rostos. As antigas solidariedades “oficiais” deram lugar ao reconhecimento da interdependência concreta dos povos, de todos os povos.

Deste ponto de vista, a Rússia é hoje uma sociedade aberta ao estudo e à análise por académicos e observadores de todo o mundo. E a sua evolução permanentemente escrutinada, como um dos palcos de maior importância do relacionamento internacional.

O que acontecer na Rússia tem repercussões no mundo. Como se está a ver.

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Tendo a Federação Russa sido criada há um quarto de século, uma grande parte da população activa do País, os jovens, nasceu e cresceu já no novo contexto social e político. Com uma abertura que os irmana, como nunca, aos congéneres para além das fronteiras. E todavia os mantém diferentes. Porquê?

Não sendo qualificado para tentar uma análise científica da sociedade russa, não preciso todavia de recorrer a tais credenciais para afirmar o que é evidente: que os russos têm hoje o duplo desafio de construir uma economia mais diversificada e com maior igualdade; e de sedimentar novas relações humanas, no seio de uma comunidade que esteja imbuída de valores morais e éticos.

Se o vale-tudo se pode compreender em situações de transição ou de crise, as sociedades enfim estabilizadas carecem de normas para funcionarem e progredirem.

Dois actores principais na sociedade russa se apontam hoje, neste contexto, como geradores de normas e valores: o poder político e a Igreja Ortodoxa.

No que se refere ao Estado, o discurso nacionalista de Vladimir Putin visa criar pontes entre a grandeza russa do passado e os desafios do presente, assegurando do mesmo passo uma narrativa histórica contínua que não se detém longamente nas rupturas e na diversidade das situações que o País viveu, desde há pelo menos um século. É um discurso fundado no amor pátrio e na bravura das respostas militares a todas as crises, as mais antigas e as mais recentes. Desde a invasão napoleónica à invasão pelo exército de Hitler.

Quanto à Igreja Ortodoxa, a sua missão principal é, sem surpresa, a de recolocar Deus lá onde o antigo regime o retirou, ao arrepio da identidade histórica russa. Com este seu reemergir como força moral dominante, a Igreja Ortodoxa concorre para a normalização da sociedade no seu conjunto.

Questão interessante é a de saber como se completam ou articulam essas duas grandes instituições, como fontes geradoras de valores na sociedade russa dos nossos dias.

Não poucos falam de uma convergência de agendas entre Estado e Igreja que se aproveita o primeiro, instrumentalizaria a religião dominante para fins políticos, retirando margem de manobra ao poder da Igreja para definir com mais equidistância os seus objectivos de recristianização da sociedade, conforme à tradição milenar da nação.

Mas as boas relações entre Presidente e Patriarca são a prova de que tais convergências são aceites e geridas a contento das duas hierarquias, a eclesiástica e a temporal.

O secularisno é o inimigo comum que Igreja e Estado apostaram em combater. E como o estado secular tem uma geografia conhecida e essa é a da civilização ocidental, euro-americana, são os valores dominantes das sociedades da Europa e dos Estados Unidos que a Igreja Ortodoxa Russa condena e o Estado Russo combate.

De forma mais abrangente, pode dizer-se que o grande ponto de convergência entre Igreja e Estado na Rússia é a reticência historicamente partilhada para com o Ocidente e os valores que encarna.

Daí muitos considerarem ingénua a análise de que o Patriarcado de Moscovo poderia servir de instrumento de uma democratização à ocidental, aquando das transformações dos anos noventa.

Não aconteceu, não acontecerá!

Carlos Frota 

em Moscovo

Universidade de São José

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