Rota dos 500 Anos

José Henrique, o pescador

Algo que havia sido combinado em 2016, finalmente – dias após a entrada em 2019 –, acabou por acontecer. Quem nos acompanha nesta viagem certamente lembra-se de várias vezes termos referido que há uma grande comunidade de portugueses e luso-descendentes em Curaçao. E que, tanto quanto sabemos, apenas uma das famílias se dedica à pesca como modo de sustento.

Sendo na sua maioria portugueses vindos da Madeira, que nos anos trinta vieram trabalhar para a refinaria que a Shell aqui construiu, as lides do mar não lhes são estranhas. Com naturalidade, nas horas vagas do árduo trabalho da refinaria era o mar que os chamava. Chegaram a ser – pelo que nos foi contado – seis os barcos espalhados por diversos locais da ilha. Hoje, somente a família Henrique se dedica à pesca, sendo proprietária de dois barcos tradicionais.

Em 2016, quando nos foram apresentados no seu mini-mercado e loja de material de pesca, ficou desde logo combinado que teríamos o privilégio de ir com o patriarca à pesca, no barco que apenas ele governa. Infelizmente, pelas voltas que a vida dá, nesse ano acabou por não ser possível. No entanto, o contacto manteve-se e assim que chegámos à ilha fomos visitá-los para apresentar cumprimentos.

Sem que estivéssemos à espera, acabámos por ser portadores de uma triste notícia. Foi com um misto de surpresa e tristeza que o senhor José Henrique ficou a saber que um seu conterrâneo, que nos últimos trinta anos se havia fixado em Luperon, na República Dominicana, depois de uma vida repleta em Curaçao, tinha falecido há alguns meses, vítima de doença prolongada. Tratava-se de José das Neves, também ele, à semelhança de José Henrique, natural da Madeira, que com pouco mais de treze anos juntou-se ao pai para trabalhar na Shell. O pai sabia que o filho não podia ficar em Portugal, pois se o fizesse iria para a guerra em África. Histórias que se cruzam e se partilham, mudando apenas os nomes dos intervenientes.

Com o nosso regresso a Curaçao, em Novembro do ano passado, e terminada a azáfama em torno da preparação do veleiro, agendou-se a pescaria. Esta deu-se há uns dias e foi uma experiência que nunca mais iremos esquecer. Além da pesca em si, a conversa e o sentido de camaradagem de José Henrique fizeram com que o dia fosse memorável, apesar do mau-tempo, vento e mar forte.

Os barcos dos Henriques, o São Bento e o Shalako, estão no cais dos pescadores em Spanish Waters. Foi daqui que saímos a bordo da embarcação mais pequena, o São Bento, mas também a mais antiga e tradicional. Aos comandos ia José Henrique, como acontece quase todos os dias do ano, à excepção do Natal, fim-de-ano e mais algumas datas importantes para a família. Éramos apenas dois a bordo de uma pequena embarcação com pouco mais de seis metros de longo e três de largura, e com uma pequena guarita que serve de protecção para o mau-tempo e para armazenar todo o tipo de apetrechos para a pesca à linha. Às cinco e meia da manhã, ainda de noite, encontrámo-nos e preparámos o barco. Não demorou mais de cinco minutos para que as amarras estivessem soltas e rumássemos à saída de Santa Bárbara, onde o mar encontra a lagoa. Neste momento já três linhas de arrasto estavam devidamente iscadas e prontas a apanhar peixe para venda nesse dia.

A pesca é feita junto à costa, a uma velocidade de seis nós, num raio de cinco milhas, sendo que neste dia o mar não quis colaborar. A ondulação rondava os dois metros. Na rota a favor do vento até que nem se sentia muito, mas quando se invertia a marcha o pequeno São Bento quase que desaparecia entre a ondulação. Não fosse o seu potente motor inglês dos anos 50 e muito provavelmente já teria afundado. Depois de cinco passagens para cada lado, apanhámos – ou melhor, o senhor Henrique apanhou e com linha de mão – dois whahoos. Cada um com mais de vinte quilos!

O barco ia equipado com uma cana de carreto para atum (que nunca mordeu) e isca artificial, e mais duas linhas de mão para whahoo com isca artificial e uma espécie de carapau. Embora apenas os dois whahoos tenham mordido, valeu a pena pela luta que deram até serem arrastados para bordo. Depois de arpoados pouco tempo duraram até estarem sem as entranhas e cortados em dois. Foram colocados numa caixa térmica e levados para terra-firme. Aqui apenas as tripas e as guelras são deitadas ao mar. O estômago, esófago e as ovas são aproveitados para sopa, que os locais acreditam ser afrodisíaca. Aliás, o senhor José Henrique disse logo que seria esta a primeira parte a ser vendida, assim que chegassem ao mini-mercado, e que valeria tanto como um peixe inteiro.

Apanhámos os dois peixes quase no mesmo local, mas em passagens diferentes e sentidos opostos. Ainda efectuámos mais três voltas depois de capturado o segundo peixe, mas sem sucesso. Por volta das onze da manhã estávamos já amarrados no cais do São Bento. Na última passagem, já de regresso a terra, ainda mordeu uma barracuda, tendo levado metade de uma das iscas. Nada que tivesse incomodado o nosso anfitrião pois dificilmente alguém iria comprar a barracuda. Os habitantes da ilha não apreciam este peixe devido ao seu sabor muito intenso.

Da experiência vivida destacamos o facto de José Henrique, que conta já com mais de setenta anos e que recentemente teve um enfarte, ser o mestre solitário do seu barco. A outra embarcação necessita de dois tripulantes, pelo que podia ir para o mar sempre acompanhado. Contudo, prefere manter o barco mais pequeno e pescar sozinho. Em 2016 tinha três barcos. Acontece que devido a problemas de saúde e ao facto dos filhos (são quatro) estarem dedicados à outras valências do negócio familiar, viu-se obrigado a vender uma embarcação.

Questionado se deseja regressar a Portugal ou à sua Madeira, prontamente respondeu que tem lá ido nas últimas duas décadas, quase todos os anos. Em 2018 não o pôde fazer por causa do problema de saúde que o afectou, tendo viajado para a Colômbia para realizar tratamentos. Se tudo correr como espera, este ano irá novamente à Ribeira Brava, e a Aveiro onde tem grandes amigos de Curaçao. Regressar de vez não está para já nos planos, «mas talvez um ano possa acontecer», confessou. Quanto aos filhos e aos netos, não acredita que alguma vez decidam deixar a ilha. Gostam de Portugal para férias mas pertencem a gerações diferentes, já com poucos laços afectivos à terra dos pais.

O dia terminou à hora de almoço. José Henrique não me deixou ir embora sem um “bocado” de peixe. Prontamente pegou na faca e cortou três postas de whahoo, o suficiente para cozinharmos três refeições para três pessoas. Cada posta era maior que o prato!

João Santos Gomes

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