A vida de marinheiro é mesmo assim. Nunca nada é como planeado.
Não é que me considere marinheiro, longe disso. Tenho o maior dos respeitos por quem vive do mar e não me atrevo, apesar de viver no mar (não dele), a comparar-me a essa estirpe de valentes pessoas às quais o nosso país e cultura tanto devem ao longo dos séculos e que sempre são esquecidos.
Na última crónica disse que iríamos velejar de St. Thomas, nas Ilhas Virgens Americanas, para Grenada, já junto da costa da Venezuela. Algo que deveria ter sido feito em quatro ou cinco dias de viagem directa e para a qual contávamos com tempo e prognósticos meteorológicos muito bons. Mas a vida no mar é mesmo assim… É tudo muito lindo no papel. No final do primeiro dia em mar alto já estávamos a ver que algo teria de mudar; no segundo dia tínhamos toda a certeza que não seria possível manter a rota que queríamos e tivemos de começar a introduzir alterações ao rumo para evitar ser empurrados para o meio do mar do Caribe. Aliás, agora olhando para trás, até teria sido positivo se tivéssemos optado por seguir o vento. Por esta altura estaríamos no Panamá e teríamos encurtado a viagem em cerca de três meses. Mas, pela negativa, não teríamos a oportunidade de conhecer todos estes recantos paradisíacos nas ilhas das Caraíbas.
No terceiro dia de mar, quando já deveríamos estar a dois terços do destino, pouco mais de um terço tinha sido feito e à noite apanhámos o maior susto que tivemos até hoje. A ligação de gás da cozinha (temos a garrafa no exterior do barco, à popa, para evitar tê-la no interior) rebentou junto do regulador da garrafa, causando um enorme estrondo e metendo a botija em roda livre depois de partir todos os apoios que a mantinham fixa. Felizmente, apesar de algumas queimaduras nos dedos devido ao gás extremamente frio, fui capaz de fechar a válvula de segurança e evitar males maiores. Não ganhámos para o susto durante essa noite e, a partir daí, nunca mais tivemos comida quente. Um dos maiores obstáculos ao nosso progresso. Para a bebé temos leite e comida enlatada a bordo, suficiente para várias semanas. Já nós, os pais, depois de dois dias a comer enlatados, bolachas e leite, começámos a ficar um pouco desanimados.
No mesmo dia, durante a acalmia da parte da manhã e enquanto dormitávamos todos no exterior, fomos visitados por uma traineira de pesca. No meio do mar, a mais de 300 milhas de terra para qualquer dos lados, um grupo de homens aos gritos que nos fez saltar sem saber bem o que fazer. A primeira sensação foi a de serem piratas e de que a nossa viagem chegara ao fim. Felizmente, e depois de conseguirmos trocar algumas palavras, era apenas um grupo de pescadores da Venezuela que tinha ficado sem água e sem comida a bordo e queria pedir-nos algo para comer e beber. Com um balde e uma corda entre as duas embarcações fomos capazes de lhes dar umas latas de comida, pacotes de bolachas e uma garrafa com água. Agradecidos, deram meia-volta e foram na direcção oposta à nossa. Para nós foi um resto de dia a olhar o horizonte para ter a certeza que não voltavam atrás. Acontecimentos que deram lugar a uma tomada de decisão pelo capitão. Decisão tomada com a cabeça e ponderando todas as informações disponíveis. Mudou-se a rota e apontou-se às ilhas mais próximas (cerca de 200 milhas náuticas de vento contrário), abandonando-se a ideia de seguir directamente para Grenada. Depois de muito orçar contra o vento, usando também o depósito e a reserva de gasóleo, chegámos a Dominica com o credo na boca porque não tínhamos nem mais uma gota de combustível. Cansados, exaustos e com muita vontade de comer algo quente. Sopa foi o que mais desejámos.
Agora que tudo está ultrapassado, voltámos ao plano original e iremos seguir para Grenada, indo de ilha em ilha. Não há nada como os planos originais. Isso é algo que aprendemos com esta experiência.
Felizmente, apesar do problema do gás, nada mais se danificou no nosso veleiro, apesar de termos apanhado ventos fortíssimos, várias pequenas tempestades e chuva forte. Apesar de tudo, posso mesmo dizer que esta passagem foi das mais gratificantes até ao momento porque como família tivemos oportunidade de passar mais tempo juntos. Durante o dia, porque o tempo esteve sempre bom, ficávamos todos juntos no exterior, cantávamos, brincávamos e conversávamos. Algo que hoje raramente as famílias podem fazer. A nossa segurança, tirando o incidente do gás, nunca esteve colocada em causa. Navegar em alto mar é, na opinião de todos os velejadores, do mais seguro que se pode fazer quando os barcos estão equipados para tal. Ventos fortes e tempestades não são problemas de maior, visto que os barcos estão preparados para lhes fazer frente. O maior obstáculo foi mesmo a falta de comida quente.
Quanto à ilha de Dominica ainda não temos muito para dizer. As pessoas parecem ser bastante afáveis e a ilha em si é um paraíso natural com muito verde, muita natureza e pouco desenvolvimento. Vivem muito do turismo natural (mar e serra), apesar de haver também alguma indústria e agricultura. Mas, como todas as pequenas ilhas, dependem do exterior para a maioria do que precisam na vida quotidiana.
Ancorámos na capital Roseau quase em cima da costa, pois o leito do mar é tão declinado que as profundidades junto à costa atingem quase os cem metros. No segundo dia o veleiro teve de ser amarrado a uma bóia de ancoragem para evitar que a âncora estivesse sempre a arrastar. O leito de areia dura e algas tornam quase impossível o uso de âncoras convencionais.
Foi aqui na capital que descobrimos que o povo dominicano é grande devoto da Nossa Senhora de Fátima, existindo uma grande igreja em sua honra. Ainda não tivemos oportunidade de a visitar mas iremos fazê-lo em breve. Também eu sou um crente em Fátima e tê-la junto a nós tem um significado especial. Não é por acaso que no Verão do ano passado fizemos quase 200 quilómetros a pé para visitar o santuário da Cova da Iria, onde pagámos uma promessa. Algo que iremos repetir em breve em nome da minha crença de que há algo de especial naquele recanto de Portugal.
João Santos Gomes