Rivalidade Luso – Gaulesa na Corte do Filho Celestial

Um episódio médico

Em 1687, um século após o estabelecimento, em Shiuhing, da primeira Casa da Companhia de Jesus, assomava aos portões de Pequim um grupo de jesuítas franceses que viajara até à Ásia sob os auspícios e protecção do rei Luís XIV. Foram, é claro, prontamente recebidos pelos padres do Padroado que os alojaram nas instalações da Missão Portuguesa. Porém, bem cedo os gauleses mostraram ao que vinham: rivalizar com os lusos confrades, pois, no caso, os interesses de Estado suplantavam largamente os da Igreja. E a oportunidade de ouro não tardou a chegar…

Buscava então o imperador Kangxi um médico europeu, e, como é natural, procurou-o entre os jesuítas do Padroado, muito deles seus confidentes, e até amigos, como era o caso do padre Tomás Pereira, seu tutor musical. Foram-lhe então recomendados o padre e médico italiano Isidoro Lucci e o cirurgião chinês João Baptista Lima, que servia o Senado de Macau, crescido e formado em Goa, Batávia e Sião, sempre entre europeia gente. Saíram estes jesuítas de Macau, rumo à Cidade Imperial, a 12 de Maio de 1692, tendo aí chegado dois meses depois. Sucesso tiveram nos vários doentes que foram tratando. Contudo, quando o imperador Kangxi adoeceu com elevada febre, Isidoro Lucci, temendo que sobre a Missão fossem infligidas represálias caso o doente não sarasse com a prescrição aplicada, respondeu que não tinha remédio algum, “querendo acabar de vez com todas as perguntas e histórias que o podiam embaraçar em tal doença”. Erro crasso. Lucci e Lima seriam recambiados para Macau e os franceses, confrontados com uma oportunidade única, propuseram-se a curar Kangxi, “sem experiência e sem doutrina, ou para adiantarem-se na Graça do Rei, ou para fazer oposição aos outros Padres… e estão agora ainda metidos nas mezinhas e coisas medicinais, o que tanto se adiantaram que o Rei mandou o Padre Bouvet… de buscar e trazer mezinhas para a Corte”.

No fundo, os gauleses limitaram-se a administrar, com sucesso, uma potente dose de quinina a Kangxi. Este, feliz e grato, em jeito de recompensa, doou-lhes “um edifício para residência na parte ocidental da cidade e um terreno, materiais e dinheiro para a construção duma grande igreja que seria dedicada ao ‘Salvador do Mundo’”. Não contente com o gesto, Kangxi desfilou a cavalo pela cidade ao lado dos quatro padres – João de Fontenay, Cláudio Visdelou, Joaquim Bouvet e João Francisco Gerbillon – aos quais, confessava, “devia a vida”. Doravante passaria a Missão Francesa a gozar de grande simpatia na corte e de especiais favores junto do imperador, quantas das vezes em detrimento da Portuguesa. Por estas e por outras, a França acabaria por ser apontada como “a protectora das missões católicas na China”. Uma total falsidade, pois, como se sabe, o labor missionário dos padres portugueses excedia em muito o dos restantes.

O problema é antigo: ao longo dos séculos (e ainda hoje) foram salientados os feitos dos mais diversos missionários europeus, enquanto que os dos portugueses ficaram por contar. Como bem recorda Charles Boxer, “são lembradas as obras de Martini, Couplet e Le Comte, ao passo que são esquecidos os trabalhos dos pioneiros Semedo, Gouveia e Magalhães. Ao mais superficial estudante da história das relações estrangeiras da China são familiares os nomes de Ricci, Schall e Verbiest, mas é provável que nunca tenha ouvido falar de Tomás Pereira, José Soares e João Mourão, não menos influentes que os primeiros. A falta de contacto com as inúmeras mas pouco acessíveis fontes portuguesas é a razão de se ter feito pouca justiça a estes homens notáveis, e no geral ignora-se que os Jesuítas Portugueses de Pequim se correspondiam com a Sociedade Real de Londres, com a Academia Imperial da Rússia e com a Academia Real de Paris. De resto, um dos mais famosos jesuítas franceses, o padre Amiot, escrevia de Pequim em 1752 que os padres portugueses faziam muito mais conversões que os seus colegas franceses”.

Convém salientar que as lutas travadas pelos luso-missionários com os homens da Propaganda Fide não era de rebelião contra a Santa Sé – nunca esteve em causa a sua devoção e lealdade a Roma e ao Papa –; apenas se limitavam a defender os direitos seculares outrora outorgados e repetidamente confirmados por diversos sucessores de São Pedro. A este respeito escreve Boxer: “A Cúria Romana não somente favorecia as reclamações da sua própria Congregação da Propaganda contra as do Padroado, que era mais venerável, mas também tendia, por motivos políticos, a apoiar as da Espanha e da França, quando estas entravam em conflito com os portugueses. Estes últimos ficavam assim colocados numa tríplice desvantagem, e ainda mais ainda quando os jesuítas franceses da Missão da China mostraram uma tendência crescente para se voltar para o padroado do Roi-Soleil da França em vez do Roi-Epicier de Portugal”.

O Padroado Português do Oriente sempre pugnou pelos seus direitos, jamais reconhecendo autoridade aos religiosos que partissem para o Oriente sem o aval de Lisboa. Assim se explica a recusa de Macau em obedecer ao patriarca Tournon (que não passara por Lisboa), como também, dez anos após a morte desse legado, a sua obediência ao patriarca Mezzabarba, esse sim, chegado ao Oriente a bordo de um navio português.

Joaquim Magalhães de Castro

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