Falar de Natal é falar de família
Nos lares de Macau em que se fala Português, Natal é sinónimo de mesa farta e de generosidade, mas também, e sobretudo, de família. A pandemia de Covid-19 continua a impedir reencontros e a adiar abraços, mas não rouba magnitude à mais aguardada das épocas do ano. O CLARIMdesvenda-lhe como se vive o Natal em casa de três residentes do território com raízes de quadrantes muitos distintos do planeta.
«O que não pode faltar numa mesa de Natal? Efectivamente, a família. Esse é o ponto fulcral daquilo que o Natal representa para nós». O veredicto é de Elias Colaço, mas poderia ter sido proferido por Rita Santos, por Carlos Lobo ou por qualquer uma das milhões de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do mundo, que se preparam para celebrar novamente o Natal longe dos que lhes são mais queridos.
Rita Santos tem a maior parte da família em Macau e a casa vai encher-se de música e dos aromas seculares da gastronomia macaense na noite da Consoada. No entanto, há ainda assim lugares à mesa que o Covid-19 não vai deixar preencher. «Cheguei a organizar festas de Natal com todos os membros da minha família. Este ano não vai ser possível, alguns dos meus irmãos estão fora. Tenho um irmão e a sua família que estão em Portugal e que não conseguem voltar. Tenho uma irmã que está no Brasil e que também não consegue voltar por causa da pandemia», lamentou.
Rita Santos cresceu na zona norte da cidade, no seio de uma família numerosa – «éramos doze à mesa, a contar com os meus pais» – onde havia sempre lugar para mais um. É a memória dos Natais de outrora, com a mesa e a casa cheias, que alimenta em Rita Santos a percepção de que quanto maior for a família, mais genuíno é o espírito natalício. «Eu era criança, mas dava apoio à minha mãe e às minhas irmãs para preparar a comida para um grupo numeroso de pessoas. À mesa era costume termos à volta de vinte a 25 pessoas na nossa casa, que era pequena. Tínhamos uma sala pequena, mas era um dia muito feliz, o 24 de Dezembro», recordou, acrescentando: «Este ano também vamos celebrar “em grande” e convidamos não só as minhas irmãs, como também os seus filhos e os seus netos, para virem à minha casa. Ainda faltam alguns dias, mas já nos começámos a preparar, a pensar no que vamos arranjar para a noite da Consoada».
Mais do que ressuscitar o passado, a noite vivida à volta da mesa – não falta o tacho, a empada, a alua e as demais iguarias da quadra – serve também para preparar o futuro e semear um semblante de identidade junto das gerações mais novas. «É uma festa muito gira, porque as crianças gostam de receber prendas e juntamos todos os netos das minhas irmãs; todos num ambiente familiar, com alegria, a cantar e a contar histórias, a relembrar o passado», referiu. «Todos os anos preparo o Presépio e gosto de explicar a história da Natividade ao meu neto, os três reis magos e a estrela, e explico-lhe que a estrela serve para os guiar para o local onde nasceu o Menino Jesus, em Belém», assumiu Rita Santos, não sem uma pitada de orgulho.
CULTIVAR A GENEROSIDADE
Em casa de Carlos Lobo, o Presépio é exposto no Tempo do Advento, sendo este o primeiro indício de que o Natal está à porta; mas, em respeito absoluto pela tradição, o Menino Jesus só aparece na manjedoura na noite da Consoada. Pelo segundo ano consecutivo, Carlos vai celebrar o Natal longe dos pais, devido à pandemia de Covid-19. Por muito penosas e difíceis que sejam as circunstâncias, a crise de saúde pública, defendeu Carlos Lobo, tem o condão de fazer com que as pessoas olhem para a quadra com outros olhos. «Apesar de todos os desafios que hoje vivemos, continua a ser um momento propício à reflexão. Acho que nos lembramos das nossas famílias, das pessoas que estão longe de nós, das pessoas que já cá não estão. E lembramo-nos da importância desta quadra, não só ao nível das relações familiares, mas também das relações sociais e culturais», disse. «Se calhar, por causa desta pandemia e das limitações que todos nós temos em Macau relativamente aos nossos familiares que estão longe, tem uma importância ainda mais acrescida. De certa forma, faz-nos pensar mais sobre a importância das relações familiares e daquilo que nos une, ao invés daquilo que nos afasta».
Numa mesa onde não pode faltar o bacalhau e em que as rabanadas são as melhores embaixadoras da arte natalícia, há tradições mais essenciais do que outras e a mais importante é a de cultivar a generosidade. «Tenho dois filhos pequenos e não deixo de dar prendas, como é óbvio. Mas procuro fazer com que aquilo que ofereço responda a uma necessidade», explicou Carlos Lobo. «Há um senhor, já de alguma idade, que é quase membro da família. Costuma passar o Natal connosco e quando penso em oferecer-lhe algo, penso em algo para ele vestir ou calçar. Penso em algo que possa ser realmente necessário.(…) Em parte, o espírito do Natal passa por pensar no bem dos outros. É isso que eu procuro fazer nesta quadra», rematou.
Elias Colaço, residente de Macau cujas raízes estão em Damão, vai passar a noite da Consoada com a mãe e o filho, mas não é o número que faz a força. A mãe, a quem os anos já vão pesando, sempre semeou a mesa natalícia de iguarias de todas as espécies e feitios, mas também de um sentido muito genuíno do que é o Natal. «Nós vemos o Natal como uma expressão religiosa, o nascimento de Jesus Cristo, e é isso que vamos celebrar, mas o que pomos à mesa são todas aquelas iguarias que não podem faltar. O bacalhau, a bebinca», ilustrou. «Lembro-me desde criança, desde sempre de irmos à Missa do Galo e encontrarmos não só a família, como também os amigos, no adro da igreja; depois, cada um ia com a família para as suas casas comer uma ligeira ceia. Não perdemos muito essa tradição, embora com ligeiras adaptações às circunstâncias», acentuou.
Com uma filha em Portugal, Elias Colaço deixou no ar um desejo para 2022: «O que eu desejava mesmo, para mim e para todos nós, independentemente de como cada um vive o Natal, é algo de que estamos privados há dois anos, e que é abraçar os nossos familiares e amigos que estão distantes. É isso que eu desejava que se pudesse concretizar no próximo ano».
Marco Carvalho