Valmor e outras arquitecturas.
Quando morreu, em 1898, Fausto de Queiroz Guedes, visconde de Valmor, mal imaginava quantas viriam a ser as interpretações dadas ao galardão que ele acabara de instituir para o futuro, assim expresso no seu testamento: “Deixo mais cincoenta contos à Cidade de Lisboa afim de que esta quantia forme um Fundo cujos rendimentos anuais constituam um Prémio que será anualmente dado em duas partes iguais ao Proprietário e ao Architecto do mais bello prédio ou casa edificada em Lisboa, com a condição porém de que essa casa nova, ou restauração de edifício velho, tenha um estylo architetónico Classico, Grego ou Romano, Romão-Gothico ou da Renascença, ou algum tipo artístico Portuguez, enfim um estylo digno duma cidade civilizada”. Assim rezava o documento daquele que viria a ser conhecido como Prémio Valmor.
Não foi preciso muito tempo, no entanto, para que os desejos de Queiroz Guedes fossem desvirtuados. Consoante as épocas e os interesses político-económicos o Prémio seguiria diferentes padrões. Foram de início galardoadas as opulentas casas da burguesia. Depois os prédios de rendimento financiados pelo grande capital colonial e latifundiário. Nos anos 40 chegaria a vez dos prédios do Estado Novo. Actualmente são as obras das autarquias ou das tentaculares sociedades anónimas.
O caso Valmor demonstra que um homem nunca pode confiar no cumprimento da sua vontade após a sua morte. O melhor é mesmo usufruir o que se tem enquanto se é vivo. Senão vejamos: De entre os prémios e menções honrosas Valmor atribuídos, sete foram alterados, doze já foram demolidos, e outros dois encontram-se num estado de ruína lastimável. Já para não falar na atribuição de obras que não se aproximam nem um bocadinho dos desejos expressos pelo visconde no seu testamento, como é o caso do horrendo Conjunto das Amoreiras, de Tomás Taveira (Prémio Valmor 1993). Atribuições como esta levaram muita gente a questionar o interesse de continuar a atribuir o galardão. Pois de que vale estar a premiar o “mais bello prédio ou casa edificada em Lisboa”, se eles, daqui a uns anos, correm o risco de serem demolidos ou cairão irremediavelmente no abandono?
«Quando a lógica», comentava a propósito o arquitecto José Manuel Pedreirinho, «é fazer edifícios com mais de dez andares do que aqueles que lá estavam na véspera, não é possível preservar o património». Depois, com uma ironia a saber a metáfora, acrescentaria: «Quando passamos a ver quantos quilos de papel vale um livro, tanto faz que sejam os “Lusíadas” ou uma lista telefónica».
Hoje, pelo menos em teoria, o prémio Valmor continua a existir, muito embora há anos em que o galardão não é atribuído.
Atribuído foi, há já quase duas décadas, o prestigioso título Património Mundial ao Alto Douro Vinhateiro, e embora cumprisse com os requisitos teve e tem os seus senãos. Apesar do optimismo de Braga da Cruz, o então presidente da Fundação Rei Afonso Henriques, entidade responsável pela iniciativa, a tarefa não foi nada fácil. Recorde-se que Alto Douro Vinhateiro integra um grupo restrito de locais premiados com a designação Paisagem Cultural – conceito que abarca paisagens que combinam o trabalho humano com os valores naturais. Só para que se tenha uma ideia: entre as centenas de locais classificados como Património da Humanidade em todo o mundo, a apenas a uma dúzia foi-lhes granjeada o título de Paisagem Cultural. Bernd Von Droste, primeiro director do Centro do Património Mundial da Unesco, para quem o Alto Douro Vinhateiro é «a mais incrível catedral do trabalho humano, como são as Pirâmides do Egipto, a Grande Muralha da China ou as catedrais góticas da Europa», em devido tempo chamou a atenção para o calcanhar de Aquiles da candidatura ao afirmar que «o Alto Douro tem algumas infra-estruturas e lugares que não se adequam ao carácter tradicional da região e à excelência da paisagem». Ora, como para bom entendedor meia palavra basta, Braga da Cruz e a sua equipa tiveram que seleccionar cuidadosamente a mancha geográfica mais homogénea e mais representativa e excluir categoricamente todos os vestígios modernaços de novo-riquismo, para verem o seu objectivo concretizado. Aliás, o conselheiro alemão acabou mesmo por confessar que aquilo que menos gostava na região era «a urbanização moderna» com «prédios fora de escala».
Fora de escala, na verdade, verdadeiro elemento alienígena na cidade do Porto, temos a Ponte do Infante. Uma estrutura pesada que liga a Serra do Pilar às Fontainhas. Resultado: caos ambiental e um verdadeiro anacronismo numa época em que, inevitavelmente, se vai ter de começar a pensar seriamente em eliminar os veículos automóveis das zonas históricas da cidade e devolver o espaço aos peões. A Ponte do Infante não une nem aproxima, antes empurra e destrói. Transformou as Fontainhas, importante bairro histórico incluído em programas de turismo cultural, num local de contrastes por excelência. Aí se conseguiram “conciliar” elementos que em qualquer outro lugar são tidos como absolutamente irreconciliáveis: destruição de uma zona histórica classificada e preservação do património; qualidade de vida e especulação imobiliária; reabilitação de zonas degradadas e o seu arrasamento; revitalização urbana do centro e a sua transformação em subúrbio betonado, preocupações ambientais e poluição aérea, visual e sonora; enfim, retirou-se trânsito automóvel do centro e simultaneamente criou-se uma via rápida que o lança para lá.
Joaquim Magalhães de Castro