As misteriosas “Torres de Silêncio”
Informa no seu diário de viagem o padre António Monserrate que nos dias santos, bem cedo pela manhã, os parsis rezam em voz alta numa língua estranha, pois, como o próprio garante, “têm o seu próprio sistema de escrita”; na realidade, o Avéstico, idioma muito próximo de Sânscrito védico. Encontram-se reunidas as suas sagradas escrituras num único volume, o Avesta, acessível apenas aos conhecedores do exótico linguajar. Inclui o Avesta as observâncias religiosas, a sabedoria e decretos legais dos antepassados e ainda a tradição dos magis, os padres do zoroastrismo, reputados pelas suas profecias e adivinhações. É claro que para uma cabal compreensão dos estudos zoroastrianos, obrigatória se torna a consulta de várias outras obras secundárias…
Insiste o sacerdote catalão no facto de, quanto a tradições, os parsis “não apenas se assemelham, mas definitivamente reproduzem, as dos judeus”. Porém, e apesar de seguirem um livro único, mantém o paganismo. Adoram o Sol e o fogo e em nome deste constroem templos zelosamente guardados por sacerdotes. Estes asseguram que nunca ali falte o “ghi” (manteiga refinada) ou o óleo perfumado que mantêm aceso o fogo sagrado. Caso sejam compelidos a estabelecer alguma declaração por juramento – nota ainda Monserrate –, os parsis fazem-no colocando água sobre as brasas acesas. Se se recusam a tal, melhor será não lhes fazer confiança. Reserva ainda uma palavra o nosso jesuíta para a dieta de tal gente: derivados de leite, “ghi”, vegetais, leguminosas e frutas, sendo que o vinho é interdito. Nos costumes mostram-se liberais, ao ponto de deixarem que se divorciem à vontade as suas esposas, contudo se estas se mostram adúlteras cortam-lhes os narizes apontando-lhe assim como único caminho a prostituição. Em resumo, o clérigo apoda de selvagem o carácter daquela gente, “tão selvagem que em nada difere dos outros pagãos”, dizendo ainda que se algum desastre acontece com alguns deles “cometem suicídio de uma forma horrível”, embora não entre em pormenores sobre a matéria.
Vários interditos em relação à morte regiam (e regem ainda) os parsis. Consideravam-se conspurcados, por exemplo, se por acaso tocavam num cadáver. Por essa razão não retiravam os mortos pela parte da frente da casa, optando por abrir um buraco na parede dos fundos. Tampouco os transportavam aos ombros, antes os arrastavam pelos pés, tendo o cuidado de previamente deitar fora toda a água arrecadada no vasilhame e os objectos utilizados pelo falecido. Como não queimavam nem enterravam os defuntos – pois isso seria profanar a terra e o fogo, ambos elementos sagrados –, deixavam-nos num local ermo cercado por muros altos para impedir a entrada de animais selvagens, embora fossem bem-vindos os abutres e os grifos. De facto, na tradição zoroastriana a exposição dos mortos era considerada o acto final de caridade de um ser humano, ofertando aos pássaros o que de outra forma seria destruído. “Era como se fosse melhor”, comenta, chocado, Monserrate, “ser rasgado e devorado por aves de rapina ou chamuscado pelo calor do sol, do que ser consumido pelas chamas, ou coberto de terra e assim eliminado!” Chamam a tais lúgubres repositórios “torres de silêncio” e António Monserrate foi provavelmente um dos primeiros ocidentais a fazer-lhes menção.
Na tradição iraniana, as tais “torres de silêncio” eram construídas no topo das colinas em locais desérticos distantes dos centros populacionais. Porém, no início do Século XX, o costume seria gradualmente descontinuado em favor do enterramento ou da cremação. Nas cercanias de Yazd, no centro do Irão, são ainda bem visíveis algumas dessas torres, hoje simples monumentos. Já na Índia, a peculiar tradição mantém-se, embora o abissal decréscimo da população de abutres nas últimas duas décadas (devido sobretudo ao envenenamento provocado por pesticidas) tenha obrigado a comunidade parsi a reproduzir abutres em cativeiro e a recorrer a “concentradores solares” (essencialmente, grandes espelhos) para acelerar a decomposição dos corpos colocados no interior das “torres de silêncio”. Estas, bastante uniformes, têm uma cobertura quase plana, sendo o perímetro ligeiramente superior ao centro e o telhado dividido em três anéis concêntricos. No anel externo, são colocados os corpos dos homens; o anel do meio é reservado às mulheres e o anel interno às crianças. Uma vez branqueadas pelo Sol e pelo vento (o que pode levar até um ano) as ossadas são reunidas no centro da torre, onde, com a ajuda da cal, se desintegram gradualmente. O material restante – com o escoamento da água da chuva – passa por vários filtros de carvão e areia antes de ser arrastado para o rio ou para o mar. Estas instalações funerárias são geralmente administradas pelas “anjumans”, associações zoroastrianas predominantemente conservadoras constituídas por nove membros entre os quais cinco são padres. Consideradas locais sagrados, as “torres de silêncio” estão interditas a todos os que não pertençam à comunidade parsi.
Joaquim Magalhães de Castro