Um olhar sobre os pársis zoroastras
A cidadela de Fatehpur Sikri, com torres a intervalá-la, tinha duas milhas de circunferência e quatro portões. Guardavam o mais impressionante de todos eles, “o portão do Circo”, muito utilizado pelo rei, duas estátuas de elefantes em tamanho natural; tão majestosas e fidedignas que, sugere Monserrate, “dir-se-iam uma obra de Fídias”. Muito perto dali destacava-se uma pirâmide a partir da qual eram medidas as distâncias para os marcos miliários “colocados à maneira romana ao longo das estradas”.
Local habitual de residência de Acbar, Agra fora preterida, em favor de Fatehpur Sikri, por recomendação de Shaikh Salim Chisti, um sábio eremita por quem Acbar nutria imenso respeito. Este, visitava-o com bastante frequência, permanecendo com ele dez ou vinte dias em cada uma dessas visitas. A companhia de um santo era sempre desejável, talvez por isso quando uma das suas esposas engravidou Acbar levou-a à presença do eremita para que a protegesse até ao nascimento do rebento; no caso, Jahangir, seu sucessor. Amarrar nós ou pedaços de barbante nos túmulos dos santos é considerado potente talismã capaz de propiciar a gravidez. Não admira pois que o túmulo de Salim Chisti em Fatehpur Sikri seja ainda hoje visitado por mulheres hindus, maometanas ou até cristãs, que amarram fitas e cordéis na treliça de mármore que cerca a tumba.
Como nos lembra no prefácio da sua obra, Antonio Monserrate, seguindo um valioso preceito jesuítico, procurou anotar todos os pormenores relacionados com a viagem dos padres, a sua estada na Corte do Rei e a campanha deste no Afeganistão, não hesitando em revelar o próprio Acbar como uma das suas principais fontes, além “de um diário de viagem escrito por um certo embaixador enviado pelo rei Henrique IV de Castela a Timur” – o viajante Ruy Gonzáles de Clavijo – e umas quantas obras “de muitos outros escritores cuja autoridade é confiável”. O relato da viagem à corte mogol ocupa a primeira parte do livro, sendo a segunda constituída por dados biográficos de monarcas mongóis e as características humano-geográficas da velha Índia. Cinjamo-nos ao diário de viagem:
Após quatro dias de descanso em Damão, Rodolfo Acquaviva e companheiros retomaram a jornada tendo-os acompanhado até o primeiro marco miliário o superior da ordem, alguns sacerdotes e um grupo de habitantes da fortaleza. Ali se despediram deles, “não sem sinais de amor mútuo”, algo que não passou despercebido aos restantes membros da larga caravana. Pernoitaram na aldeia de Oroar e no dia seguinte entraram nos domínios de Acbar, cruzando “o rio do Monte Nera (‘Paharnera’)” que servia de divisória entre os territórios portugueses e o reino mogol. Balsar, “cabeça de boi” no vernáculo local, foi a parada seguinte. E antes de chegarem à cidade portuária de Surate atravessaram Navsari, localidade que merece da parte de Monserrate alguns parágrafos. Diz-nos ele que “Nausarinum é a morada principal de certos homens que se autodenominam persas, ou jezini, da cidade de Jeze, na Pérsia. Por raça são gabraenses a quem os portugueses chamam de Cuarini”. Enfim, tantas designações para mencionar um só povo: os pársis, seguidores do zoroastrismo.
Graças ao estabelecimento de duas famílias de clérigos pársis em Navsari no início do Século XIII, a cidade cedo emergiria como o principal centro daquele culto, sendo os seus padres bastante procurados pela crescente comunidade que se ia aglomerando noutros lugares da Índia. Eventualmente, Surate substituiria Navsari como principal assentamento da comunidade, isto, já no Século XVIII, ocupando Bombaím essa posição nos dias de hoje. No seio da comunidade pársi de Navsari nasceria, em 1839, Jamsetji Nusserwanji Tata, o dito “pai da indústria indiana”, fundador da cidade de Jamshedpur e do Grupo Tata, o maior conglomerado do subcontinente. Afirma Monserrate que no semblante e na forma como vestem, e até como pensam, assemelham-se os pársis aos judeus. Também a inclinação para o trabalho duro parece ser traço comum. “Na verdade”, diz o sacerdote catalão, “eles são frequentemente chamados de judeus pelos portugueses, nem eles próprios rejeitam inteiramente o nome”. E porque praticam o rito da circuncisão, assume o jesuíta reconhecerem os pársis Abraão como antepassado seu. Mostra ainda satisfação pelo facto de, à semelhança dos cristãos, calcularem correctamente a data da vinda de Cristo à Terra, “a partir de seus documentos antigos”.
Salienta a seguir uma marca peculiar pela qual se distinguem dos demais povos. Trata-se de uma veste de linho, algodão ou musselina, que desce até a coxa. As bordas desta indumentária, o “surdah”, com claro significado religioso, são costuradas e enquanto a parte superior cobre a cabeça as pontas são amarradas juntas no peito, deixando uma dobra quadrada com cerca de dez centímetros de largura, estando o seu portador proibido de colocar o que quer que seja nas pregas. Outra peça de vestuário distintiva é o “kusti”, um comprido cinto de lã trançado que é enrolado à volta do corpo várias vezes e que todo o bom pársi tem por obrigação religiosa usar permanentemente.
Joaquim Magalhães de Castro