Os sufis e os iogues de Peshawar
Inteirou-se Acbar do acontecido com o exército de Murad ao chegar à cidade de Peshawar, pelo que se apressou em rumar a Cabul. Não sem antes colocar forte guarnição para vigiar a passagem do Indo, tendo pedido ao filho mais velho – “a quem ele mais amava, e que tinha então quatorze anos” – que o seguisse na retaguarda liderando o resto do exército com “as bagagens, os suprimentos, o tesouro real e restante equipamento militar”. Ficara também decidido: em Jalalabad, “a três dias de marcha de Cabul”, permaneceriam as mulheres da comitiva, “junto com toda a mobília real e os utensílios domésticos”.
Entre os seus generais, Acbar contava com um jovem cujo pai pertencera aos roshaniya, uma “seita de fanáticos”, no entender de Monserrate, pois o propósito dessa agremiação, entretanto, certamente se desvirtuara. Em boa verdade, estamos a falar de um movimento sufi, populista mas nada sectário, fundado no seio das tribos afegãs pelo guerreiro, poeta, sufi e líder revolucionário Bayazid Ansari, mais comummente conhecido como Pir Roshan, isto é, “Santo da Luz”.
Bayazid desafiara o poder dominante mogol, promotor da desigualdade e da injustiça social, apregoando em contrapartida um sistema de códigos e princípios igualitários que os seus seguidores, os roshaniya, promulgaram dentro do Islão, questionando os cânones islâmicos básicos. É claro que algo do género surgia como uma ameaça para o fortemente estabelecido poder mogol. Bayazid pregara uma vida de pobreza, jejum e “lembrança de Deus” que atraía as classes mais pobres. À medida que o número dos seus discípulos aumentava, os ulemás acusavam Bayazid e discípulos de fraude, dizendo que estes buscavam apenas riquezas mundanas e nada sabiam da verdadeira religião.
Quando questionado acerca do teor da sua escola sufi, Bayazid replicou: “apenas sigo a tradição divina”. A sua mensagem alicerçava-se na “renúncia das actividades mundanas” e a “iminência do dia da ressurreição”. Não deixa de ser estranho, por isso, a hostilidade de Monserrate ao afirmar que “se os príncipes vizinhos não tivessem o cuidado de o destruir”, este [Bayazid] poderia ter causado problemas a todas aquelas tribos e até aos próprios mogóis. Para o catalão, os roshaniya não passavam de um “um bando de quatrocentos desesperados e devedores fugitivos”, atraídos pela pilhagem e a revolução, admirando-lhes, porém, a dedicação e fidelidade ao seu chefe. Lembra que após a morte deste, nenhum dos partidários ousaria ocupar o seu lugar, permanecendo, no entanto, obstinados nos seus princípios. Ao inteirarem-se da aproximação das forças de Acbar depressa se renderam, tendo-lhes este garantido “liberdade para seguir a sua religião e costumes, e obedecer e reverenciar o filho do seu profeta”. Sabia o imperador mogol que ao conceder-lhes liberdade mantê-los-ia pacíficos e controlados; ademais, sincrético que era, tão pouco lhe importava a religião seguida pelos seus inúmeros e multiétnicos súbditos.
António de Monserrate descreve-nos depois Peshawar, “cidadela numa colina, mas não fortificada”. Mirza Hakim mantivera-a algum tempo, mas face à aproximação de Acbar retirara apressadamente para as montanhas. Tivera Peshawar outrora uma população de “dois mil cidadãos comuns, além da guarnição”, mas agora nada mais se via além das cinzas, pois todas as casas haviam sido queimadas. Menciona o nosso sacerdote, nos arredores orientais da urbe, a existência de uma comunidade de iogues semelhante “em crença, modo de vida e vestimenta” àqueles que viviam no “monte de Balnatus”. Denominavam-na os locais “colónia de Gorkhatri”, ou seja, “célula de gurus”, outrora mencionada nos escritos de Babur, avô de Acbar. O fundador do império mogol descreve-a como um dos lugares mais sagrados para os iogues hindus, que vindos de grandes distâncias ali cortavam o cabelo e rapavam a barba. Do seu chefe espiritual se dizia ter sido preceptor de Balnatus e o lugar, tão sagrado era que “Deus, o Criador do Universo, modelara o resto do universo a partir dele”. Também aqui Acbar, “de cabelo solto e com as mãos e os olhos erguidos para o céu”, foi reverenciar o eremita acoitado na sua desconfortável caverna.
Na verdade, houvera ali originalmente um mosteiro (falamos da época de Kanishka, imperador da dinastia Kushan), e ao longo dos Séculos IX e X ali se fizera a aprendizagem do Budismo. Após a passagem de Acbar, a sua neta, Jahanara Begum, acabaria por convertê-lo num caravanserai, ordenando a construção de uma grande mesquita, uma sauna e dois poços de água, “para conveniência dos viajantes”. Os sikhs, depois de o dotarem com um templo dedicado a Shiva, fizeram dele local de residência e sede oficial do mercenário italiano Paolo Avitabile, excêntrico governador de Peshawar de 1838 a 1842. Típico caravanserai da era mogol, Gorkhatri, “complexo fortificado constituído por uma área de 160 por 160 metros quadrados e com dois portões proeminentes”, encontra-se localizado num dos pontos mais altos de Peshawar e é uma das atracções turísticas desta cidade.
Joaquim Magalhães de Castro