Proximidade com o imperador e aprendizagem
Atentemos agora ao dia-a-dia dos padres na corte do Grão-Mogol. Informa Monserrate que no relacionamento pessoal com Acbar eram tratados com especial cortesia, recebiam comida da mesa real e quando o catalão esteve doente tratou logo de visitar o monarca mogol, tendo o cuidado de o cumprimentar em Português, pois Acbar dominava o nosso idioma. Além disso, jamais exigia que os padres tirassem os chapéus na sua presença. E, fosse em reuniões solenes ou encontros privados, encetava conversas com eles, pedindo-lhes que “se sentassem perto dele”. Cumprimentava-os com um aperto de mão caloroso e chamava-os para longe da sua guarda pessoal. Podia assim falar de assuntos privados. “Mais de uma vez”, lembra o catalão, foi visto em público, “com o braço em volta do pescoço de Rodolfo Acquaviva”, em amena cavaqueira. Tal familiaridade encorajaria os missionários a apontarem-lhe as falhas da sua governança. E até da sua conduta pessoal. Faziam-no, porém, “modestamente”, não sem antes se certificarem do estado de espírito do monarca. Aproveitaram, por exemplo, para condenar as lutas até à morte entre gladiadores locais, para gaudio da populaça, e não entendiam, de todo, a tolerância manifestada face ao cruel ritual do “sati” – sacrifício das esposas de um defunto. Ousaram criticar a poligamia de Acbar e a sua “negligência e demora em estudar as coisas sagradas”, aconselhando-o a reservar algum do seu tempo a “ouvir a interpretação da Lei Divina”. Tudo isto acatou Acbar, de boa vontade, demonstrando o maior respeito sempre que com os padres abordava assuntos metafísicos.
Os livros e os quadros sagrados, erguia-os bem alto e beijava-os com escrupulosa reverência, o nosso Acbar, e quando este visitava a capela cristã – fê-lo mais de uma vez – tirava o turbante por deferência ao costume europeu. Quando o acompanharam os seus filhos, Salim, Murad e Daniyal, e ainda um grupo de nobres, todos tiraram os sapatos antes de entrar no templo. Pediria então Acbar aos filhos que reverenciassem as imagens de Cristo e da Virgem Mãe, tendo um dos nobres presentes exclamado com emoção que “aquela que estava sentada no seu trono com tão belas vestes e ornamentos” só podia ser na verdade “a Rainha dos Céus”. Acbar acolheria com o maior deleite um belíssimo quadro da Virgem, trazido de Roma e oferecido pelos padres em nome do Superior da Província. No Natal de 1580, de novo acompanhado pelos filhos, visitou o presépio erigido pelos padres, tendo gabado a sua enorme beleza e engenho.
Todos estes acontecimentos encheram os sacerdotes de alegria e um renovado espírito reacendeu-se, por assim dizer, nos seus corações. “Dedicaram-se de novo ao trabalho, com a graça de Deus, determinados a levar a cabo a sua tarefa com êxito até ao fim”, escreve Monserrate. Para o melhor conseguir, pediram a Acbar que lhes dispensasse um professor capaz de os instruir no Persa, a língua da Corte, “a mais adequada para os debates e discussões”. O mogol atribuiu a tarefa a um certo jovem, “de mente aguda e capaz”, nada mais nada menos que o seu ministro Abu’l Fazl. Graças a ele, Rodolfo Acquaviva, senhor de uma capacidade intelectual considerável, fez enormes progressos. Em três meses apenas expressava-se facilmente em Persa, embora não conseguisse falar de maneira polida ou fluente. Considerava Monserrate ser o Persa “uma língua muito bonita” e o seu vocabulário “adequado ao uso por aqueles que se dedicam aos estudos eruditos e filosóficos”. Nesse processo, um dos sacerdotes jesuítas, nascido em Ormuz, recuperaria o uso da sua língua materna (Persa), “que quase havia esquecido”.
A rápida aprendizagem de Rodolfo não só lhe granjeou grande reputação de homem inteligente e sabedor, como despertou a admiração de toda a Corte. Estranhavam os cortesãos que um estrangeiro pudesse aprender tão facilmente uma língua desconhecida! E até o seu sotaque estrangeiro os agradava! Uma vez alcançada proficiência suficiente no Persa, os sacerdotes começaram a verter para aquele idioma as principais passagens dos Evangelhos, acompanhando-as de comentários e explicações com o intuito de esclarecer devidamente os pontos que os muçulmanos geralmente questionavam. Tiveram o cuidado de mostrar a Acbar tudo o que escreviam, evitando assim os frequentes erros de interpretação que costumavam ocorrer “por causa da malícia” dos seus oponentes. Além disso, estavam ansiosos por reverter a suspeita de que, sendo estrangeiros, estavam a ser “indevidamente favorecidos”, pois o rei com eles tinha muitas confidencialidades.
Monserrate acabaria por ser designado tutor do príncipe Murad, então com cerca de nove anos de idade, para que o instruísse na Língua Portuguesa e na boa moral. O jovem príncipe era bom aluno. Aprendia com facilidade, portava-se bem e a sua capacidade intelectual estava acima da média. “Nesse aspecto”, lembra Monserrate, “teria sido difícil encontrar por ali um jovem cristão capaz de o superar”. Em frente ao professor, mostrava-se obediente, “não ousando sequer erguer os olhos” quando aquele o reprovava… Em apenas três meses aprendeu a ler e conseguia imitar a caligrafia do tutor com uma habilidade tal “que facilmente se poderia pensar que passara um ano nessa tarefa”. Tudo isso agradou muito ao rei, seu pai, que lhe ordenara que recitasse diante de si, “todos os dias, tudo o que aprendera, de cor ou lendo histórias”.
Joaquim Magalhães de Castro