PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 12

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 12

Muharram e Holi em Narwar

Após três dias de árdua e perigosa caminhada, num território inóspito e pedregoso pejado de apertados desfiladeiros, profundos riachos e, o pior de tudo, infestado de salteadores – “os seus habitantes selvagens, sabendo que podem cometer roubos impunemente, costumam atacar os viajantes de emboscada e levar seus bens como pilhagem”, nota Monserrate –, os nossos heróis chegam a Narwar, cidade acoitada no sopé de uma colina e em cuja crista resiste ainda em aceitável condição a muralha de uma bela fortaleza de traça mogol. É aí de tal forma frequente a ventania e violentos os redemoinhos que nenhuma das casas seria capaz de manter o telhado se, como diz Monserrate, “o próprio Deus não tivesse resolvido este difícil problema fornecendo uma abundância natural de lajes de mármore, que são usadas para a cobertura”. Uma vez mais são confrontados os forasteiros com festividades de cariz religioso. Estamos a 15 do segundo mês do ano, data de arranque do Muharram (Moarrão), mês sagrado no Islamismo ultrapassado em importância apenas pelo Ramadão e que marca também a saída de Nuh (Noé) da Arca e o dia em que Deus salvou o profeta Musa (Moisés) do faraó do Egipto, permitindo que cruzasse o Mar Vermelho com o seu povo.

Muçulmanos sunitas e xiitas assinalam o Muharram de forma diversa, embora ambos jejuam pontualmente. Para os primeiros, é um tempo de paz e reflexão; para os segundos, um tempo de penitência, tempo de lembrar o martírio, por decapitação, de Hussain, neto do Profeta, na batalha de Karbala, em 680; mas também o envenenamento do seu irmão Hassan uma década antes, e ainda o assassinato de Ali, pai de Hassan e Hussain e esposo de Fatimah, filha de Maomé, na mesquita de Cufa, no ano 661. Para nunca esquecer a brutalidade da batalha de Karbala, que, no fundo, determinaria a cisão do Islamismo entre sunitas e xiitas, reúnem-se estes nas mesquitas para chorar a morte de Hussain e salientar “a importância do que a família do Profeta fez pela justiça” dos despossados deste mundo, enquanto outros protagonizam rituais públicos que incluem espancamento do peito, autoflagelação com correntes e cortes na testa com lâminas. Inúmeras vezes fui testemunha involuntário desse ritual sadomasoquista e, acreditem, não é nada bonito de ver! O sangue espirra para todo o lado e as ambulâncias andam num corrupio transportando para os hospitais aqueles que desfalecem ou abusam na profundeza dos cortes.

Monserrate resume o assunto a um alegado confronto entre cristãos e maometanos, quando na verdade a batalha de Karbala opôs facções muçulmanas rivais. Apenas isso. Diz o padre que “após terem sido conquistados os mouros pelos cristãos em uma guerra que eles empreenderam para estabelecer e difundir o sistema religioso de seu avô (!?)”, foram Hussain e Hassan, prisioneiros eram, “cruelmente torturados pelos incrédulos (como os muçulmanos nos chamam)”, sendo compelidos a andar descalços sobre brasas. Por essa razão, no entender de Monserrate, jejuam os muçulmanos por nove dias, “comendo apenas lentilhas”, e publicamente recitam, no cimo de uma plataforma elevada, “a história dos sofrimentos de Hassan e Hussain” provocando com as suas palavras “lamentações e as lágrimas” entre os assistentes.

No último dia do Muharram, o dia de Ashura, são erguidas grande piras funerárias e sobre elas pulam os crentes espalhando as cinzas com os pés enquanto “gritam selvaticamente ‘Hassan! Hussain’”. Não faço ideia onde foi o jesuíta buscar tão estapafúrdia teoria, mas a ela não é alheia certamente a convicção do português de ter sido cristianizada, em tempos, toda aquela região.

Também os hindus festejam por essa altura o Holi, “não menos selvagem e degradado”, na opinião do catalão. Diz-nos que durante duas semanas têm os hindus a liberdade de “lançar poeira sobre si mesmos e sobre quem passar”, cobrindo com lama os seus corpos e os de quem encontram pelo caminho, esguichando ainda sobre eles “um corante vermelho” através de umas palhinhas de bambu. Mas o mais “abominável de toda a festa”, realça Monserrate, é o sacrifício ritual de uma árvore, “de uma espécie um tanto semelhante à palmeira”, à “Mãe dos Deuses”, conhecida pelos antigos romanos como Cibele, e à frente da qual são colocadas oferendas. Já defronte ao casario amontoam-se enormes pilhas de toros, “da altura de torres”, e caída a noite crentes deitam-lhe fogo os fiéis, cantando e dançando em seu redor. Por fim, e para concluir a cerimónia, incendeiam a árvore consagrada e ali esperam até que não passe de monte de cinzas.

Em 48 horas apenas chega a comitiva a Gwalior, urbe embelezada pela imponente fortaleza e pelo palácio real bem assentes no topo da rochosa colina sobranceira ao casario cá em baixo. Confessa o padre ser “acidentado e difícil” o caminho que conduz ao alto, hoje em dia muito bem pavimentado sem que para isso se tivesse de recorrer a essas modernices descaracterizadoras do património com as quais, infelizmente, nos confrontamos cada vez com mais frequência. Chama-nos a atenção Monserrate para a imensa estátua de um elefante junto aos portão principal (qual terá sido o seu paradeiro?) e, pelo caminho, nas partes íngremes do penhasco, vários templos e casas subterrâneas. Ora, só se pode estar a referir às caves de Siddhachal, talhadas na rocha entre 1440 e 1473 por ordem de Danger Singh, senhor dos Tomar, a etnia predominante na região de Gwalior.

Joaquim Magalhães de Castro

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