Jovens querem ser protagonistas na Igreja.
Roma recebeu mais de 300 jovens, provenientes dos cinco continentes, para uma semana de reflexão sobre os seus desejos, anseios, preocupações e dificuldades. O Papa Francisco acolheu-os e pediu-lhes que falassem sem filtro, com coragem. E agora tem um documento para apresentar aos bispos no sínodo que transporta consigo todas essas questões.
Quando se começou a falar da realização de uma assembleia pré-sinodal, ninguém sabia muito bem o que se iria passar. Apesar dos muitos fóruns de juventude que existem em diversos movimentos, alguns até internacionais, a verdade é que nunca nenhuma convocatória tinha sido tão global e ambiciosa. Francisco, o Papa que convocou o Sínodo sobre os Jovens, que elaborou um questionário online para que os jovens respondessem, que quis ouvir todas as estruturas de pastoral juvenil dos países, foi ainda mais longe: quis ouvir os jovens, presencialmente, e garantir-lhes que a sua voz iria ser ouvida no sínodo que irá discutir a forma como a Igreja deve chegar aos jovens.
Chamou um representante de cada país, chamou um representante dos principais movimentos juvenis, e sentou-os todos à mesa, no Colégio Pontifício Santa Maria Mater Ecclesiae, à saída de Roma. Francisco quis ouvir os jovens, e eles vieram cheios de expectativa.
A organização da reunião era em tudo sinodal: uma assembleia plenária para lançar o debate; grupos linguísticos para trabalhar os temas e apresentar vários resumos; a elaboração de um documento final, que procurasse resumir o que tinham sido aqueles dias de reflexão. A tudo isto, o Papa acrescentou um dado importante: não queria só ouvir os mais de 300 jovens naquela sala, queria ouvir mais.
Foram disponibilizados grupos para cada língua na rede social Facebook apenas acessíveis a jovens entre os 16 e os 29 anos, e os números cresceram: mais 15 mil jovens disseram “presente” e estiveram a participar nos trabalhos dos grupos, e a contribuir para a reflexão. O grupo em Português era o segundo maior em números, com dois mil e 900 jovens inscritos. Produziram mais de dez mil comentários, que foram todos lidos e pensados, garante Javier Ayala, um seminarista chileno que estava a participar no pré-sínodo, fazendo a gestão das redes sociais. «Garanto-te, porque estive na equipa, que foram lidos os mais de dez mil comentários que foram lá colocados. Foi um grande trabalho de síntese», disse à reportagem da Família Cristã, que esteve em Roma a acompanhar os trabalhos.
O Papa abriu os trabalhos com uma manhã de reflexão e partilha. Pediu aos jovens que fossem «profetas», e que fizessem «sonhar os velhos». Por várias vezes, referiu esta Igreja “velha” que procura encontrar-se com os jovens, e também os jovens se referiram à Igreja velha e ao diálogo vital com a Igreja “nova”, no final do documento que resumiu estes dias de trabalho.
Mas ali, na sala da assembleia, não se notava que o Papa fazia parte de uma Igreja velha. Começou por discursar, mas depois ouviu as questões dos jovens e respondeu de forma muito mais informal.
«Como é que podemos ajudar os jovens a perceber que a violência contra as mulheres é um crime contra a Humanidade?», perguntava Blessing Okoedion, da Nigéria, que tinha sido vítima dessa violência ali mesmo, em Itália, um crime que, disse, era «praticado por muitos católicos».
«E, por favor, se um jovem tem esse comportamento, pare, hein? É um criminoso. Quem faz isso é um criminoso. “Mas, padre, não se pode fazer amor?” – Não, não: isso não é fazer amor. Isso é torturar uma mulher. Não confundamos os termos. Isso é criminoso. Mentalidade doente. E quero aproveitar este momento, porque falaste de baptizados, de cristãos, para pedir perdão a vocês e à sociedade, por todos os católicos que praticam este acto criminoso», disse o Papa. Sem filtros, sem tabus, continuou num diálogo que durou toda a manhã daquela segunda-feira.
Para tomar parte nesta assembleia, vieram de Portugal três jovens: a Joana Serôdio, em representação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), o Rui Teixeira, em representação da Conferência Internacional Católica do Escutismo (CICE) e o Tomás Virtuoso, uma delegação maior que o esperado, fruto das representações de movimentos internacionais, que depositaram em jovens portugueses a confiança na representação.
Depois da presença de Francisco, os trabalhos iniciaram nos grupos linguísticos, em quatro línguas: Espanhol, Italiano, Inglês e Francês. A meio dos trabalhos, os “nossos” portugueses resumiam a «riqueza» e a «profundidade das reflexões». «A grande honestidade de cada um pôr ali aquilo que verdadeiramente achava sobre os problemas, com uma grande profundidade, com uma grande capacidade de ir ao fundo das questões, foi uma das coisas que me deixou muito contente, não havia banalidades», destacou Tomás Virtuoso à Família Cristã. Rui Teixeira apontou a «descontinuidade que existe após o acompanhamento dos jovens até ao Crisma» e a «falta de respostas a nível diocesano para a juventude», enquanto Joana Serôdio destacou o desafio que seria criar «pontes». «Pontes que me vão permitir conhecer outras realidades e deixar que essas pessoas possam entrar na realidade portuguesa e os nossos jovens possam enriquecer com elas», referia.
O objectivo prático desta assembleia era a criação de um documento de trabalho que pudesse servir de base à elaboração do “Instrumentum Laboris”, o guião de trabalho para os bispos que virão ao sínodo de Outubro. A este documento juntar-se-ão as opiniões dos departamentos de pastoral juvenil e movimentos de todo o mundo, assim como os resultados do inquérito online que o Vaticano fez directamente a cada jovem em todo o mundo, e ao qual responderam dezenas de milhares de jovens.
Um dos aspectos originais deste processo foi que Francisco não chamou apenas jovens católicos. Ele queria mais, e por isso convocou jovens de outras confissões religiosas e mesmo ateus. É o caso de Sandro Bucher, suíço, ateu convicto, que aceitou o convite «surpreendente» do Papa. «Fiquei contente por perceber que, apesar de não ser crente, tenho as mesmas questões que a juventude que é crente, e as mesmas preocupações», disse na Sala de Imprensa da Santa Sé, aos jornalistas que o questionavam, acrescentando que «nós, ateus, queremos fazer bem no mundo e ajudar as pessoas também, e queremos ter diálogo com os crentes, para podermos criar uma unidade». Não se converteu, mas mudou a opinião que tinha dos jovens católicos e da Igreja. «Melhorei claramente a minha opinião sobre os jovens católicos como um todo e a Igreja. São mais abertos do que eu esperava, e as minhas questões são as deles», afirmou.
Toda esta riqueza de partilhas e vivências produziu um documento dividido em quinze pontos, tantos quantas as questões que tinham servido de ponto de partida às reflexões dos jovens.
Um dos aspectos mais falados durante toda a semana tinha sido a necessidade de dar aos jovens maior protagonismo nas suas acções, e o relatório dedica um ponto a esta questão. “A Igreja deve envolver os jovens nos seus processos de tomada de decisão e oferecer-lhes mais papéis de liderança. Essas posições precisam de ser ao nível paroquial, diocesano nacional e internacional, inclusive em comissões no Vaticano”, refere o documento. Segundo o que os jovens escreveram, eles estão “prontos”. “Sentimos fortemente que estamos prontos para ser líderes, que podemos crescer e sermos ensinados pelos membros mais velhos da Igreja, por mulheres e homens religiosos e leigos”, referem, num dos que poderá ser dos desafios mais difíceis para a Igreja.
O acompanhamento dos jovens foi outro dos aspectos mais significativos que foi falado neste pré-sínodo, o que surpreendeu Briana Santiago, uma noviça americana que estuda em Roma, e que esteve a apresentar o documento final aos jornalistas. «Sempre tive a imagem da maioria dos jovens como muito seguros de si próprios, a saberem o seu caminho, e fiquei surpreendida com a quantidade de gente, mesmo online, que disse que precisava de um acompanhamento da Igreja, de pastores e outras pessoas que os orientem e guiem», disse à Família Cristã no final da apresentação.
Os jovens pedem, quase exigem, “companheiros na jornada”, pessoas que “evangelizem com a sua vida”, e não “santos”. “Essas pessoas não precisam de ser modelos de fé para imitar, mas sim testemunhos vivos. Essas pessoas devem evangelizar com a sua vida. Sejam eles rostos familiares no conforto de casa, colegas da comunidade local ou mártires que atestam a sua fé com as suas próprias vidas”, pedem.
Mas o documento também teve temas onde claramente não há uma posição única dos jovens, pese embora o respeito com que todas as posições foram acolhidas. No que toca a temas como contracepção, aborto, homossexualidade ou coabitação, o relatório refere que “há grande desentendimento entre os jovens, dentro da Igreja e no resto do mundo”, sobre estes temas, mesmo entre aqueles que tem “mais conhecimento dos ensinamentos da Igreja”. “Como resultado disto, alguns podem querer que a Igreja mude os seus ensinamentos ou pelo menos permita acesso a uma maior compreensão e formação sobre esses ensinamentos. Outros aceitam estes ensinamentos e vêem neles uma fonte de alegria”, reconhecem os jovens no documento, que não adianta como gostariam que a Igreja abordasse estas questões, ou que tipo de alterações poderia a disciplina ter.
Por outro lado, o documento final, escrito pelos jovens, critica a Igreja de, por causa dos escândalos do passado e do presente, ter feito com que a religião não seja “o principal referencial quando os jovens procuram um sentido [para a sua vida, para a sua existência]”, e apontam o dedo a muitas paróquias em todo o mundo, “que já não são lugares de encontro”, e a Igreja surge como “muito severa”, associada a um “excessivo moralismo”. “Precisamos de uma Igreja que seja acolhedora e misericordiosa, que valorize as suas raízes, o seu património e que ame a todos, mesmo aqueles que não seguem os padrões estabelecidos. Muitos daqueles que procuram uma vida de paz acabam por se dedicar a filosofias ou experiências alternativas”, lamentam os jovens.
E é por isso que pedem uma Igreja que seja “comunidade transparente, acolhedora, honesta, convidativa, comunicativa, acessível, alegre e interactiva”. “Hoje os jovens procuram uma Igreja verdadeira”, continuam os jovens no seu relatório, uma “igreja credível”, sem “medo de se permitir ser vista como vulnerável”. “A Igreja deve ser sincera em admitir os seus erros passados e presentes, em dizer que é uma Igreja composta por pessoas que são capazes de erros e incompreensões. […] Se a Igreja agir assim, então diferenciar-se-á de outras instituições e autoridades das quais os jovens, na maior parte, já desconfiam”, pode ler-se no ponto 11.
Sobre a dualidade Bem//Mal que as novas tecnologias e o ambiente digital representam, o Documento Final da Assembleia Pré-sinodal pede “prudência” na sua utilização, por causa dos riscos de “isolamento”, mas acrescenta que o impacto das redes sociais não pode ser desvalorizado. “Os ambientes digitais têm um grande potencial para unir, como nunca, pessoas em diferentes partes do mundo. A troca de informações, ideais, valores e interesses comuns é agora mais possível. O acesso a ferramentas de aprendizagem online abriu oportunidades educacionais para jovens em áreas remotas e trouxe o conhecimento do mundo para as pontas dos dedos”, refere o relatório.
Neste sentido, os jovens sugerem aos padres sinodais que a Igreja deveria “ver a tecnologia – particularmente a Internet – como um lugar fértil para a Nova Evangelização”, dizem. E propõem que “os resultados dessas reflexões” sejam “formalizados num documento oficial da Igreja”.
A terminar, os jovens pedem que a Igreja esteja nas “ruas, que é onde a maior parte das pessoas está”, e pedem que esta iniciativa sinodal não termine aqui. “Ficamos emocionados por sermos levados a sério pela hierarquia da Igreja e sentimos que este diálogo entre a Igreja jovem e a Igreja velha é um processo de escuta vital e frutífero. Seria uma pena se este diálogo não tivesse a oportunidade de continuar a crescer! Esta cultura de abertura é extremamente saudável para nós”, frisaram.
Agora, têm a palavra os bispos, no sínodo de Outubro.
RICARDO PERNA
Família Cristã