João Caeiro versus Paulo de Seixas
Continuamos em 1540, às portas das muralhas de Martavão, suficientemente altas e resistentes às contínuas saraivadas de pelouros disparados pelos canhões e mosquetes dos setecentos artilheiros e espingardeiros portugueses entretanto recrutados pelo rei de Toungoo, sob o comando de um certo João Caeiro, como nos recorda Fernão Mendes Pinto. Vindo de Malaca àquele porto, “de que então se tirava proveito”, num junco de um comerciante muçulmano, o distinto filho da Bairrada depara com a cidade sitiada. Será aconselhado por Caeiro e por quatro outros capitães (a quem se destinava o seu recado-convocatória de regresso a Malaca, por pesar sobre esta a ameaça do Achém), a ali permanecer, discretamente, pois poderia levar pela medida no calor da peleja. Assim procedeu o nosso viajante durante os restantes 45 dias do cerco. Teremos pois, doravante, um Mendes Pinto testemunha do trágico acontecimento e interveniente numa série de futuros episódios dessa longa campanha militar birmanesa que se estenderia de 1534 a 1549.
As páginas da “Peregrinação” constituem, aliás, riquíssimo alfobre nesse domínio. No caso particular do cerco a Martavão, é Mendes Pinto o repórter no lugar certo, à hora certa. O contingente reunido por Tabin Shwehti – Pinto designa-o de “Rei Bramá” e considera-o tirano e bastante cruel – era deveras impressionante: treze mil soldados, incluindo os mercenários lusos, dois mil e 100 cavalos e 130 elefantes. No lado oposto, Saw Binnya alicerçava a confiança nos sete navios de guerra portugueses ao seu serviço e, em terra, nos mercenários estrangeiros, pois havia-os das mais variadas proveniências, agora reunidos ao toque do seu capitão Paulo de Seixas. Terá certamente esmorecido o monarca mon ao constatar que o outro lado se provera de similar escol castrense, e que não podia contar com o apoio de Binnya U, governador de Moulmein, o porto mesmo em frente, pois este decidira manter-se fora da contenda.
O desgaste defensivo de seis meses, as incontáveis perdas de homens de armas e a fome acabariam por coagir Saw Binnya à rendição. Pedia, em troca de um tributo anual de trinta mil biças (48.987,9 quilogramas) de barras de prata e outros valiosos presentes, a continuidade do posto de vice-rei. Mas qual quê, a Tabin Shwehti só lhe interessava a rendição incondicional. Não admira, pois, que tivesse ignorado, por duas ocasiões, o lancinante pedido de passagem segura até aos arrabaldes da cidade, para Saw Binnya e família, a troco do tesouro do reino, ao que consta, de incalculável valor. Aliás, esse era o seu único trunfo, aliado à luz ao fundo do túnel que representavam as décadas de relações mercantis com os europeus do Ocidente extremo. Saw Binnya sabia bem que se se declarasse vassalo de El-Rei de Portugal e se mostrasse disposto a abrir mão da metade do seu tesouro, poderia sair daquela camisa de forças. É claro que o interlocutor da força inimiga só poderia ser o alevantado João Caeiro, a quem decidiu pedir ajudar para escapar. Foi entregue a ultra secreta negociação, muito naturalmente, ao capitão Seixas. Trajando à peguana, para não ser reconhecido, esse “natural da vila de Óbidos”, veio durante a noite à tenda onde estanciava Caeiro com a irrecusável oferta de duas cargas de ouro e prata e 26 baús de pedras preciosas, além de toda a riqueza resultante do saque dos pagodes da cidade que dava para encher quatro navios. Não contava, porém, o asiático monarca, com a proverbial inveja lusa, tão bem sintetizada pelo vate no último verso dos “Lusíadas”, e neste particular encarnada nalguns dos adjuntos de Caeiro. Logo visualizaram todo o prestígio e lucro concentrados na figura de Caeiro, antevendo até a possibilidade de este vir a ser promovido a “El-Rei marquês, ou, pelo menos, Governador da Índia”, além de temerem perder as respectivas cacholas caso o rei birmanês viesse a inteirar-se da tramoia. Terão dado a entender, inclusive, que o denunciariam se aceitasse a proposta. Caeiro não teve alternativa senão despedir de mãos vazias o emissário seu compatriota.
Mendes Pinto lamenta esta oportunidade única de obtenção de fartos recursos para a Coroa, sabotada por uns “ministros do demónio”, cujas objecções mais não eram que “rebuço da sua fraqueza e más inclinações, e o temor que tinham de perder as suas fazendas”. A surpreendida desilusão do rei de Martavão face ao resultado negativo da diligência é claramente expressa num breve discurso, aproveitando o cronista o ensejo para denunciar, uma vez mais, a deslealdade dos portugueses para com os monarcas locais seus aliados – a “Peregrinação” expõe vários episódios do género. Antes de se despedir do fiel emissário, Saw Binnya ofereceu-lhe as duas braceletes de ouro que tinha nos braços. Paulo de Seixas abandonaria a cidade exangue na noite seguinte, acompanhado por dois filhos de tenra idade e a mãe destes, moça “formosa e muito fidalga”. Meses depois, chegado à costa do Coromandel, onde viria a casar com a beldade mon, Seixas vendeu as duas braceletes “que lhe dera o Chau Bainhá por trinta e seis mil cruzados, a Miguel Ferreira, Simão de Brito e Pero de Bruges, lapidário, os quais o Trimila Raja, governador de Narsinga, os comprou depois por oitenta mil”.
Joaquim Magalhães de Castro