POR TERRAS DE ARRACÃO – 1

POR TERRAS DE ARRACÃO – 1

O regresso aos nossos bayingyis

No decorrer do meu trabalho de investigação referente ao património português disseminado pelo mundo, em curso há já algumas décadas, Myanmar mostrou ser dos terrenos mais férteis. Posso dizer até que os contornos dessa insistente labuta se começaram a definir aí mesmo, burilado pelo convívio com as comunidades luso-descendentes do vale do Mu, os ditos bayingyis, a norte de Mandalay, a respeito dos quais ando a falar e a escrever há pelo menos 25 anos – atestam-no inúmeros artigos em revistas e jornais, um documentário televisivo trilingue, três livros e várias exposições de fotografia. Não obstante, quando em Macau, em 2014, surgiu nas bancas o “Cannon Soldiers of Burma” (curiosamente escrito por um bayingyi residente no Canadá, de seu nome James Myint Swe) deram a entender, alguns dos nossos meios de comunicação social, que aquele era um documento inédito e uma abordagem a matéria até então nunca abordada! Ainda há poucas semanas vi alguém, num programa sobre a actualidade local da TDM, recomendar a leitura do “Cannon Soldiers of Burma” (e acho muito bem!) apresentando-o, embora não de forma directa, como a primeira obra sobre esse tópico. Pois bem. Para os mais esquecidos, ou os muito distraídos, recordo que desde meados da década de 1990 saíram da minha pena inúmeros artigos (nos diários e semanários locais, na Revista Macau, em variadas revistas de Portugal, conversas nas rádios e televisões, conferências, encontros literários, conversas de amigos, etc.) dando conta do viver e sentir dessa peculiar comunidade.

O meu livro “Os Bayingyis do Vale do Mu – Luso-descendentes da Birmânia”, edição conjunta do Instituto Internacional de Macau e da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, data de 2001, tendo eu nesse mesmo ano produzido, em parceria com o Luís Nestor Ribeiro, o documentário “Bayingyi, a outra face da Birmânia”, oferecido de mão beijada à RTP e que esta nunca chegou a transmitir, muito embora o realizador Nestor Ribeiro fosse funcionário da casa. Que eu saiba, apenas a RTP Internacional difundiu uma única vez esse trabalho (um dos únicos documentários feito na Birmânia durante a ditadura dos generais de má memória!) que conta com a narração em Português do nosso conhecido Hélder Fernando, e o contributo de muitos outros excelentes profissionais. E sobre este assunto, uma pequena nota: pudemos dar-nos ao luxo de ceder gratuitamente os direito de transmissão à RTP (para que através dela se inteirassem os portugueses de um património esquecido nos confins do Oriente) pois, felizmente, para a produção do “Bayingyi, a outra face da Birmânia”, contámos com a generosa contribuição de várias instituições de Macau, devendo salientar aqui o Banco Nacional Ultramarino, cujo patrocínio permitiu a produção de um DVD (em Português, Inglês e Cantonense) que ao longo destes anos tenho distribuído entre amigos e interessados.

Em termos editoriais, voltaria ao assunto “comunidade bayingyi” nos meus livros “No Rasto de Fernão Mendes Pinto” (2013) e “Os Filhos Esquecidos do Império” (2014), constituindo neste último o miolo dessa obra, onde também falo dos luso-descendentes de Malaca e da praticamente extinta comunidade “mata-biru” de Banda Aceh, no Norte de Samatra, de quem também Portugal nunca quis saber, mas isso são contas de outro rosário. Portanto, toda a gente do meio jornalístico e literário estava mais do que informada acerca dos bayingyis e de quem os deu a conhecer no universo português, pelo que considero uma enorme desonestidade intelectual e falta de deontologia omitir o meu decisivo e pioneiro contributo para o conhecimento, na metrópole e junto da diáspora lusa, de uma das mais importantes comunidades de luso-descendentes da Ásia. Infelizmente, essa “amnésia” não se confina a Macau. Também em Portugal, a única ocasião em que se voltou a falar dos bayingyis, desta feita aos microfones da Rádio Renascença, aquando da visita do Papa Francisco a Myanmar, em 2017, e a respeito dos encontros programados com representantes da comunidade bayingyi (em Myanmar, bayingyi é sinónimo de católico), não foi feita qualquer menção aos meus trabalhos sobre a matéria que, por acaso, continuam a ser, em Portugal, exceptuando uma ou outra abordagem académica, os únicos. Curiosamente, o entrevistado em questão nunca esteve em contacto com os bayingyis e toda a informação que deles tinha recolheu-a nos meus trabalhos, como o próprio confessou em conversas que anteriormente tivemos. Existem no dicionário inúmeros termos que definem atitudes destas, mas por uma questão de higiene mental coíbo-me de os reproduzir.

Feita esta importante ressalva, e para se reponha, digamos, alguma justiça editorial, vamos ao que interessa. Aquando das sempre recompensadoras e acolhedoras estadas na antiga Birmânia, não pude, embora o desejasse, visitar a província de Arracão, na altura de acesso restrito a estrangeiros. Como bem sabemos, alterado está o panorama político e por isso pude, o ano passado, quebrando um longo jejum, regressar ao Myanmar com o expresso intuito de visitar essa remota região no Noroeste do País. O relato dessa experiência será o conteúdo destas crónicas “Por terras de Arracão”.

Joaquim Magalhães de Castro

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