Pinceladas Nipónicas – 2

Entre lendas e peregrinações

O templo de Toshogu, na cidade Nikko, a norte de Tóquio, foi erguido por um exército de mais de 15 mil artesãos vindos de todo o Japão e levou dois anos a ficar concluído. O resultado final ainda hoje é motivo de controvérsia, já que, num contraste absoluto com a simplicidade e a discrição própria da arte japonesa, Toshugu esgota-nos os sentidos com detalhes e mais detalhes decorativos. Animais míticos ou reais misturam-se numa impressionante e abusiva utilização de talha dourada e objectos laqueados, e as paredes estão repletas de baixos-relevos coloridos e pinturas de flores, dançarinas, bestas míticas, sábios chineses, entre muitos outros elementos. Na realidade, o santuário tem muito mais de chinês do que de japonês mas, apesar de todas a acusações, continua a ser considerado a quintessência da arquitectura religiosa do Japão.

Mandado erguer pelo segundo xógum, Hidetado, Toshogu é também o mais popular local de peregrinação de Nikko. À sua frente e ao lado do pagode de cinco pisos ali existente, aglomeram-se autênticas multidões, destacando-se os grupos de alunos excursionistas, bonés e lenços da mesma cor, supervisionados por professores de megafone em riste. Tirar a foto em frente a Toshogu faz parte da tradição. E para isso contratam-se fotógrafos profissionais.

No lenho do pórtico de entrada Yomeiman, o mais significativo exemplo do dinamismo arquitectónico de Nikko, também conhecido como “pórtico do pôr-do-sol”, foram esculpidos mais de quatrocentos baixos-relevos com exuberância de cores e elementos decorativos, num absoluto contraste com a habitual sobriedade da maioria dos templos japoneses. O luxo é, aliás, característica comum às restantes construções do complexo religioso de Nikko, exceptuando talvez o singelo estábulo de madeira erguido em frente a Yomeiman, onde são bem visíveis os sanzuru (os três macacos), figuras sobejamente conhecidas pelos seus princípios de “não vejo o mal”, “não ouço o mal” e “não faço o mal”.

Mas o mais célebre dos baixos-relevos de Nikko é, sem dúvida, o nemuri neko (gato adormecido), a obra-prima de Jingoro Hidari, reputado artesão do período Edo. Ali perto, Kiozo, a biblioteca dos Sutras, alberga sete mil volumes das sagradas escrituras budistas.

Comparado com o esplendor de Toshogu, o templo de Futarasan, reconstruído há 350 anos com o objectivo de perpetuar a veneração aos deuses que habitam a montanha de Natan, mergulha na floresta que o rodeia de um modo sereno e discreto.

Diz uma lenda local que o monge peregrino Shobo Shonin foi obrigado a interromper a sua viagem rumo a norte, ao deparar com o tumultuoso caudal do Daiya. Na sequência das preces dirigidas a Buda, surgiram duas enormes serpentes que ligaram as margens com os seus corpos para que o santo homem pudesse atravessá-lo. E assim surgiu Shinkyo, a sagrada ponte de madeira de um vermelho muito vivo, sustentada por dois toris de granito que assentam num caminho que conduz a uma floresta de um verde luxuriante, embora esteja mesmo ao lado da estrada nacional, sempre com intenso tráfego, uma característica do Japão rodoviário, mesmo nas zonas rurais.

Shinkyo é local sacro desde o século VII, altura em que o monge Shonin estabeleceu aí uma pequena capela. Nikko rapidamente se tornaria no mais famoso centro budista do País. Por volta do século XVII, conheceu um declínio acentuado e renasceria quando se decidiu escolher o local para última morada de Tokugawa Ieyasu, o senhor da guerra responsável pelo xogunato que governou o Japão durante dois séculos e meio, até à restauração Meiji, que marcaria o fim do longo período feudal. O esplendor de Nikko, no fundo, representa a riqueza e o poder de uma família que, durante quase três séculos, ditou o destino do Japão: a linhagem de Tokugawa.

 

O TOPO DAS COLINAS

Viajemos mais para sul, até à província de Gifu. Do alto de Hatobukiama, em Kani, simpática cidadezinha, até é fácil imaginar como seria a paisagem de colinas e campos de arroz no tempo das guerras dos xóguns. Antes das vias rápidas, dos tectos azuis e laranja das casas e das linhas de montagem de peças para automóveis se terem instalado por estas paragens. Muito antes de o ruído das viaturas competir com o canto das aves e as placas publicitárias ou o piscar das luzes dos pachinkos ter perturbado a tranquilidade dos sentidos; antes ainda das hediondas estruturas de metal e rede – com que os japoneses vieram substituir os não menos destrutivos campos de golfe – terem quadriculado o céu.

Lá do alto de Hatobukiama, dizíamos, até é fácil imaginar um outro Japão. Onde as pessoas disponham de tempo livre e onde a irritante e desnecessária lengalenga dos altifalantes das gares, autocarros, centros comerciais, casas de banho, veículos, máquinas de venda automática, supermercados, passadeiras, ruas, templos, locais de atracção turística, com os seus abunai, domo-arigato, dozo, sumi e hirashai-masen se calem para todo o sempre.

E esse Japão existe, apesar de estrangeiros como Iriceu Vaz – um dos milhares de brasileiros que trabalham nas fábricas de automóveis da região de Kani – se queixar da «frieza do povo» e da extrema «programação de suas vidas».

Iriceu interrompeu os estudos universitários para se tornar, «durante quatro anos», num imigrante, e apesar de a sua mãe ser japonesa, sente-se no Japão como um peixe fora de água. Detesta «essa coisa de carne crua, o sashimi», e não consegue suportar que a «gente se deite com as galinhas». Mas até se compreende que Iriceu reaja assim, pois nasceu e medrou no seio de uma sociedade que é precisamente o pólo oposto do rígido esquema social nipónico.

Por outro lado, é quase certo que Iriceu, nos dois meses da sua estada em Kani, nunca tinha subido ao cimo de Hatobukiama, senão ter-se-ia apercebido que a terra é mesmo redonda e por mais que lhe andemos à volta acabamos sempre no mesmo ponto. É que se Iriceu tivesse subido a essa colina aperceber-se-ia de que lá no alto sentir-se-ia como no alto de qualquer colina brasileira. Ou seja, sentir-se-ia em casa. E isto porque, certamente o leitor concordará, não há melhor terapia do que subir ao alto de uma montanha. Se Iriceu tivesse subido ao cume de Hatobukiama, veria que havia ainda muitas margens do rio Kisso – o Reno japonês – por cimentar, pelo menos no que respeita ao trecho do seu percurso compreendido entre a Kani industrial e a Inuyama, com ainda muitos vestígios de um passado feudal. Veria também que os japoneses tiveram o cuidado de construir abrigos de montanha ao longo dos muitos quilómetros de trilhos que percorrem o País de Norte a Sul, e que nesse particular abrigo do alto de Hatobukiama, tiveram até o cuidado de colocar um cobertor e uma camisola grossa entre a trave e o tecto de cimento a imitar madeira, para quem precise de ali pernoitar. O brasileiro veria ainda a caixa com o caderno e a caneta prontos a registar a escrita dos viajantes, assim como duas vassouras para manter limpo esse local de uso comum.

Provavelmente, Iriceu tampouco terá visitado os pequenos templos e respectivos jardins ocultos nos bastidores das ruidosas avenidas “enfeitadas” pelos milhares de fios de telefone e electricidade que, em mútua cooperação com os anúncios publicitários, desvirtuam a paisagem urbana. Mas isso seria uma outra história.

Essa insistência, apesar de tudo, em continuar perto dos elementos da natura – veja-se a simplicidade e sentido prático das casas tradicionais – essa sua teimosia em espalhar templos-miniaturas e obasans em granito de babete ao pescoço, tais gnomos protectores, pelas florestas do País, é aquilo que há de mais admirável nos japoneses.

Tudo isto para concluirmos que, no Japão, dentro dos templos e no topo das colinas, tudo bem. Se houver pôr-do-sol, melhor ainda. O pior é quando se regressa à planura da vida rotineira e à hora do passeio dos cãezinhos de peluche levados pela trela, e conversa junto às máquinas de venda automática de bebidas.

Como não acreditamos em impérios e é provável que se queimam agora os últimos cartuchos de um dos maiores impérios de sempre, torna-se imperativo subir todos os dias ao topo das Hatobukiamas deste planeta, para assistir ao pôr-do-sol e ali imaginar o desvanecer de todos os impérios. Com a esperança que de nascentes, depressa passem a poentes.

Joaquim Magalhães de Castro

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