Pinceladas Nipónicas – 1

Nikko e o Desfile dos Mil Guerreiros.

Nikko, a norte do Tóquio, possui alguns dos recantos mais badalados do Japão. Alguns dos mais belos templos do mundo foram ali construídos. É um imperativo, seja qual for o trajecto desenhado.

Sentados num dos confortáveis sofás do comboio da linha Tobu, longe, enfim, das multidões, depressa esquecemos as tentações da capital nipónica. Mas são necessárias várias horas de viagem para deixar de vez esse universo de prédios, viadutos e postes eléctricos que os japoneses criaram no imenso perímetro em torno da antiga Edo. E quando, finalmente, começamos a tranquilizar-nos com a chegada dos campos de arroz e das colinas verdes envoltas em nevoeiro, eis-nos chegados ao fim da linha. Nikko, assim a quente, não passa de mais uma cidadezinha feita de anúncios e casas térreas. O único sinal promissor é uma rua que sobe…

«Para chegar a Toshogu é sempre em frente». O homem idoso que se materializa à nossa frente, todo solícito, mal nos deixa olhar em redor. «Tomem este mapa. É meia hora a pé». Sato Hideyama, 68 anos, um reformado que faz serviço voluntário no quiosque da gare do serviço de turismo da cidade, conheceu bem os horrores da Grande Guerra, pois foi feito prisioneiro na China, pelos soviéticos. «Passei dois anos a pão e água», recorda ele. Talvez por isso, mais do que ninguém, o senhor Sato valorize agora a paz de locais como Nikko. «Se se despacharem, ainda vão a tempo de assistir ao torneio de tiro ao arco», atira, em jeito de despedida.

 

O TORNEIO DE YUBUSAME

Sato Hideyama refere-se ao torneio medieval, o Yubusame, que, como é tradição, antecede as festividades de Sennin Musha Gyoretsu (a parada dos mil guerreiros). A 18 de Maio de cada ano (e também a 17 de Outubro) recria-se a memorável e gigantesca procissão realizada com o fim de transferir a urna de Iyeyasu Tokugawa – primeiro xógum da era Edo (1600-1867) – de Kunosan, no distante distrito de Shizuoka, até Nikko. Urna que ficaria depositada num templo que, em sua memória, passou a chamar-se Toshogu.

Trajando a preceito, cada um dos dez cavaleiros participantes tem uma única oportunidade para tentar atingir, em pleno galope, três alvos de madeira fina espaçados entre si uns cinquenta metros, colocados no estreito caminho que liga Toshogu ao templo de Futurasan, onde anualmente se desenrola a competição. Cumprir este objectivo é uma tarefa extremamente difícil, dado que o cavaleiro, sem poder utilizar qualquer das mãos para segurar as rédeas, tem de deixar partir a flecha no momento exacto da sua passagem junto ao alvo. Depois do primeiro projéctil, o cavaleiro tem menos de cinquenta metros para colocar nova flecha no arco e tentar atingir o segundo e, finalmente, o terceiro alvo. Se bem que este se encontre a curta distância do cavaleiro, a prova exige uma perícia e exactidão muito grandes. Raramente se conseguem atingir os três alvos num só Yubusame, e são os cinco juízes da prova que, de acordo com os rituais xintoístas, recolhem as flechas perdidas e os alvos quebrados.

Finda a competição, é a vez de um grupo de cavaleiros ingleses demonstrarem como eram os torneios na Europa medieval. Fazem tiro ao alvo ao modo ocidental e exemplificam como, em pleno galope, se pode decepar a cabeça ao inimigo – representada por uma couve branca espetada numa vara – ou como se trespassa um coração – de esferovite, neste caso.

Da parte da tarde, já toda a areia que serviu para abafar os cascos dos cavalos foi varrida. Desimpede-se o caminho para que um grupo de homens trajados a rigor transporte, de Toshogu a Futurasan, seis mikoshis – andores com templos miniaturas – onde será celebrada uma pequena cerimónia religiosa acompanhada por música e orações. É do templo de Futurusan que, no dia seguinte, partirá o cortejo.

 

UM CORTEJO COLORIDO

Abril e Maio, no Japão, são meses de festividades. Mas nem sempre o tempo ajuda. Nesse ano, felizmente, o Sol vem iluminar em cheio a recriação da procissão em memória de Tokugawa. Por volta do meio-dia, os figurantes que durante a manhã se avistavam a deambular um pouco por todo o lado, aglomeram-se no terreiro em frente a Futurasan, sempre disponíveis para as lentes das centenas de fotógrafos presentes. Personificam as diferentes classes sociais do Japão medieval do período Edo: religiosos, políticos, guerreiros-samurais, simples soldados, cavaleiros, saltimbancos, mercadores, homens ilustres, sábios, artesãos, camponeses e músicos que tocam flautas e tambores.

Nas barracas de comes e bebes serve-se yuba (leite de soja) em taças de cerâmica de Mashiko. Mashiko, perto de Nikko, é um dos centros de produção de cerâmica mais reputados do Japão.

Imiscuídos entre os figurantes do cortejo movimentam-se miúdos mascarados de símios, recolhendo as moedas que o público, em pé, atrás das fitas que delimitam o trajecto, atira para cima dos mikoshi e dos figurantes. Dos altifalantes, instalados ao longo dos quinhentos metros do trajecto, saem detalhadas explicações acerca de cada grupo social ou personalidades singulares, no exacto momento em que estas passam em frente a Toshogu. Primeiro, em Japonês, e depois, em Inglês.

O cortejo culmina no terreiro de um pequeno templo. Uns após outros, libertos da sua função por algumas horas, os figurantes aproveitam para tirar os maços de cigarros dos bolsos e montarem arraiais nos relvados, onde os espera a apetitosa merenda trazida pelas mulheres da vila. Enquanto se come e se brinda com saquê da região, no palco instalado em frente desenrola-se a longa cerimónia de entrega de oferendas à urna simulada de Tokugawa, acompanhada por música religiosa, à qual assistem algumas dezenas de pessoas. Terminada a função, os altifalantes alertam os participantes para que voltem a colocar as armaduras de samurai, selar os cavalos e empunhar as lanças e os estandartes. Muito mais bem-dispostos, rostos rosados pelo álcool, os personagens históricos estão prontos para retomar o desfile, seguindo precisamente o mesmo trajecto, embora na direcção oposta, rumo a Futurasan.

 

SUPERSTIÇÕES REMANESCENTES

Hiroshi Shoji, fotógrafo de profissão, desempenha todos os anos o papel de artesão. «Faço-o como trabalho temporário, mas a maior parte das pessoas é constituída por voluntários», diz-nos, antes de mencionar a extrema competitividade no ramo da fotografia e a dificuldade em publicar as suas fotos na Imprensa. Por isso mesmo, findo o cortejo, num ritual para convocar a sorte, Hiroshi prepara-se para atirar uma pequena pedra para junto do tori de entrada de Toshogu. Se ficar no topo é bom sinal, poderá fazer um desejo; senão, terá de voltar a tentar para o ano.

Muitos dos japoneses, povo fortemente supersticioso apesar da modernidade do seu país, consultam a sorte desta maneira, logo após o cortejo de Sennin Musha Gyoretsu, a altura mais auspiciosa para o fazer. Maki Toda, uma estudante de história com 20 anos de idade, é uma dessas pessoas.

«Esta árvore tem mais de meio século», diz, apontando para o gigantesco cedro que cresce junto ao asfalto, poucos metros abaixo da capela dedicada às serpentes sagradas que estão na origem da cidade. «Há uns anos atrás gerou-se grande polémica em torno deste cedro, pois havia quem fosse a favor do seu derrube para se poder alargar a estrada». Felizmente, isso não aconteceu, e o taro, assim o designam, continua a crescer, obrigando os automobilistas a reduzir a velocidade.

Maki manifesta ainda um interesse muito especial pelas centenas de pequenas capelas – algumas delas simples miniaturas – e as estatuetas de divindades, os obasan, espalhados pelo bosque como de duendes se tratasse. Entre essas divindades cobertas de musgo sobressaem os vários bakejizos, guardiões das crianças e dos viajantes, alinhados ao longo do rio Daiya.

O luxuoso conjunto de edifícios que constituem Toshugu encerram entre paredes inúmeros objectos considerados pelo Estado “importante propriedade cultural”. O santuário onde está o mausoléu de Tokugawa é o mais conhecido dos templos, capelas e as inúmeras estátuas espalhadas pela floresta de pinheiros e cedros que cobre a bonita região montanhosa em redor de Nikko.

Joaquim Magalhães de Castro

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