500 anos de amizade: a Igreja e o Reino do Camboja

PHNOM PENH ACOLHEU PRIMEIRA CONFERÊNCIA SOBRE HISTÓRIA DO CRISTIANISMO NO PAÍS

500 anos de amizade: a Igreja e o Reino do Camboja

UM POUCO DE HISTÓRIA –Decorreu recentemente na capital cambojana a primeira conferência sobre a História do Cristianismo no Camboja, evento que atraiu jovens investigadores interessados num acontecimento com quase cinco séculos de existência – ou seja, bem antes do protectorado francês, em 1863 –, e que teve como protagonistas os religiosos portugueses do Padroado Português do Oriente, presentes naquelas paragens desde meados do Século XVI. Entre eles, destaca-se o dominicano Frei Gaspar da Cruz, autor do “Tratado das Cousas da China e do Reino de Ormuz”.

Frei Gaspar foi o primeiro clérigo católico a pisar o Reino do Camboja, em 1555, e aí se fixar. Porém, cedo se apercebeu que a conversão das almas locais iria ser tarefa árdua. Após um ano de permanência, gravemente doente, vendo que “não conseguia divulgar a palavra de Deus”, deixou a região – sem fazer “muito e sem baptizar mais do que um pagão que [deixou] na sepultura”, como nota o jesuíta Luís de Fróis numa das suas cartas –, dirigindo-se depois para Lampacau, pequena ilha na baía de Cantão que servia de entreposto aos portugueses antes de estes se estabelecerem em Macau. Gaspar da Cruz só voltaria ao reino khmer quase duas décadas depois; na verdade, em 1570, acabara de subir ao trono Apram Langara.

O Camboja estava então num estado ruinoso; conflitos internos e a ameaça siamesa eram constantes. Ciente de que a manutenção do reino só seria possível com a ajuda dos portugueses, o soberano khmer solicitou o envio de militares e religiosos, prometendo a estes todas as condições para difundirem a Palavra de Deus. A Ordem Dominicana ouviu o apelo e, entre 1582 e 1583, despachou para Lovek, a capital de então, Frei Lopo Cardoso e Frei João Madeira. Ao contrário do que ocorrera em 1555, os dominicanos foram bem recebidos pelo rei, “que lhes concedeu um terreno onde puderam construir uma casa para viver e uma igreja para celebrar missa”. Langara deu-lhes ainda autorização para pregar em todo o reino e converter ao Cristianismo qualquer um dos seus súbditos.

Contudo, a morte de Apram Langara e a ascensão ao trono de Barom Reachea II levou a uma total inversão da política religiosa. O novo rei, com crenças budistas profundamente enraizadas, não hesitou em “revogar a sua permissão de pregar aos nativos do Reino”. Mas os dominicanos não desistiram. Em 1584, o vigário da Congregação em Malaca envia Frei Silvestre de Azevedo ao Camboja para substituir Frei João Madeira e, mais tarde, Frei Reginaldo de Santa Maria e Frei Gaspar do Salvador para substituírem Frei Lopo Cardoso, mas aqueles, assustados com o clima hostil, acabam por fugir, deixando sozinho Frei Silvestre de Azevedo.

SOBRE A CONFERÊNCIA –Intitulada “500 anos de amizade: a Igreja e o Reino do Camboja”, a conferência foi organizada pelo departamento de História da Universidade Real de Phnom Penh (RUPP) em cooperação com a Associação de Historiadores Cambojanos e a Sociedade das Missões Estrangeiras de Paris, grupo missionário que hoje serve a renascida Igreja Católica no Camboja. Cerca de setenta pessoas participaram no evento, incluindo muitos jovens estudantes que acompanharam as actividades com grande interesse. Foi orador D. Olivier Schmitthaeusler, vigário apostólico de Phnom Penh, que juntamente com o líder budista venerável Yon Seng Yeath dissertou sobre a relação entre os dirigentes religiosos católicos e budistas desde 1860 até ao presente, “essencialmente em bons termos”. Faltou referir que esse “estado de diplomacia” se deve a Frei Silvestre de Azevedo, pois este, em 1584, o único missionário no Camboja, perseverara na sua missão evangelizadora e aos poucos começara a conquistar a amizade e a protecção do monarca. Tornou-se até conselheiro e dignitário do reino, com o título de “Pa” (Pai), o que lhe conferia o privilégio de se sentar na presença do rei e de usar chapéu, símbolos da dignidade real. “Barom Reachea II permitiu-lhe mais uma vez pregar o Evangelho e construir igrejas, e ainda colocou um homem culto da corte ao seu serviço para auxiliá-lo na elaboração da doutrina ‘Mistérios da Fé Cristã’ em idioma khmer”, escreve a propósito a investigadora Vanessa Loureiro.

Em 1585 chegavam ao Camboja mais dois dominicanos – Frei António Dorta e Frei António Caldeira – e, pela primeira vez, dois frades franciscanos. “Estes cinco homens”, lembra Vanessa Loureiro, “com o consentimento do rei e a oposição dos bonzos, baptizaram aproximadamente trezentas crianças”. A presença franciscana no seio da sociedade cambojana foi certamente bastante importante. Entre os membros dessa Congregação mencionamos Frei Gregório da Cruz, Frei Damião da Torre e Frei António da Madalena, este último, o primeiro europeu a visitar as ruínas da antiga capital Angkor Wat e dela dar conhecimento ao mundo.

Instituição centralizada assente num complexo mecanismo burocrático, a Companhia de Jesus foi, na segunda metade do Século XVII, a natural sucessora das Ordens Dominicana e a Franciscana, e a sua presença no Camboja prolongou-se durante 150 anos. Presença essa, aliás, amplamente documentada.

Joaquim Magalhães de Castro

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