Haverá fé sobre a terra?
Na quarta-feira, 14 de Abril de 2021, o Papa retomou na audiência aos peregrinos «aquela pergunta dramática de Jesus, que nos faz sempre reflectir: “Quando vier o Filho do Homem, encontrará acaso fé sobre a terra?”(Lc., 18, 8), ou só encontrará organizações, um grupo de “empresários da fé”, todos bem organizados, fazendo beneficência, muitas coisas…?».
O panorama mundial empresta realismo a esta pergunta dramática. É verdade que nunca houve tantas conversões e tantas vocações em muitas partes do mundo, mas todos os dias recebemos notícias de crises graves e, sobretudo na Europa, de cristãos que se afastam.
De um ponto de vista sociológico, o maior detonador desta desagregação é o divórcio. Um sujeito abandona a mulher; continua a ser católico mas começa a faltar à Eucaristia dominical; pergunta-se se este ou aquele ponto da doutrina fazem sentido mas não pede ajuda a quem sabe, vai acumulando dúvidas por esclarecer. Até que, como não está disposto a corrigir a situação, deixa suavemente de se sentir ligado à Igreja. Conserva uma noção vaga de Deus, mas já não é um Deus pessoal, é uma hipótese longínqua com quem é impossível falar. A seguir, talvez sem o próprio se dar conta, afunda-se numa derrocada completa e cada vez se convence mais de que não há solução. Nalguns casos, a certo ponto o desvario colectivo alavanca o vazio individual e brota um desejo agressivo e intolerante de refundar a Igreja em bases novas.
Este itinerário sociológico de quem se afasta tem uma certa sequência lógica, porque qualquer queda, sobretudo se é um resvalar gradual, tem uma dinâmica compreensível. Descer é fácil de explicar, especialmente porque a acção perseverante do Demónio empurra a debilidade humana. A mãozinha maléfica do Demónio sabe perfeitamente onde tem de actuar. O Papa Francisco tem-se referido muitas vezes às estratégias do Demónio, mas na referida quarta-feira foi particularmente explícito em relação a um ponto central:
«– Quando o Inimigo, o Maligno, quer combater a Igreja, fá-lo primeiro procurando secar as suas fontes, impedindo-a de rezar».
O Demónio até aceita a Igreja, desde que seja uma Igreja sem Deus, sem oração. Sobretudo nos países economicamente mais desenvolvidos, a sensação de superioridade intelectual alimenta o orgulho de refundar a Igreja sem importar como Cristo a instituiu. Quanto mais a pessoa está longe de Deus, tanto mais o atrevimento com que brotam estas propostas. Quanto mais descristianizado o país, tanto mais ousadas as propostas que de lá vêm.
«– Por exemplo, vemos isto em certos grupos que se põem de acordo para levar a cabo reformas eclesiais, mudanças na vida da Igreja… Têm muitas organizações, meios de comunicação que informam todos… Mas a oração não se vê. Não se reza. “Devemos mudar isto, temos de tomar esta decisão que é um pouco forte…”. (…)Apenas com debate, apenas com os meios de comunicação. Mas onde está a oração? A oração é que abre a porta ao Espírito Santo, que inspira a avançar. Sem oração, as mudanças na Igreja não são mudanças da Igreja, são mudanças de grupo. E quando o Inimigo – como já disse – quer lutar contra a Igreja, primeiro procura secar as suas fontes, impedindo-as de rezar e incitando-as a fazer este tipo de propostas».
O processo é quase sempre gradual. O Demónio prefere amolecer progressivamente a vontade e alimentar o orgulho. Perde pouco tempo a defender os vícios, infiltra-se. Prefere louvar a ignorância de quem se afasta de Deus: quanta ciência! Que inteligência fulgurante! Aqui está a luz do mundo!
Aos poucos, quase sem forçar, deixa-se a oração, essa relação forte e vital com Deus.
Diz o Papa:
«– Por algum tempo parece que tudo pode continuar como habitualmente – por inércia – mas depois de pouco tempo a Igreja compreende que se torna como que um invólucro vazio, que perdeu o seu eixo central, que já não possui a nascente do calor e do amor».
«– Sem fé, tudo se desmorona; e, sem a oração, a fé extingue-se. Fé e oração, juntas. Não há outro caminho. Por isso a Igreja, que é casa e escola de comunhão, é casa e escola de fé e de oração».
José Maria C.S. André
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa