Uma cidade com Portugal lá dentro
Ao passar em frente ao lendário café Dos Hermanos vislumbro um ecrã televisivo e só então me dou conta que o Brasil defronta a Bélgica nos quartos de final do Mundial. E lá estão, sentados em mesas de tampos redondos em frente de uma Cristal fresca, alguns adeptos belgas enfarpelados de vermelho e amarelo. Na parede exterior uma tabuleta recorda os transeuntes que ali conviveram, “entre outros artistas e intelectuais de Cuba e do mundo”, Federico García Lorca, Alejo Carpentier, Enrique Serpa, Marlon Brando, Errol Flynn e Ernest Hemingway. Antecede esta gente a seguinte frase: “Aqui ergueram os seus copos num brinde à amizade e à alegria de viver”. De todos os nomes apenas o de Enrique Serpa – ignorante me confesso – nada me diz. Nada me diz, mas espevita-me a curiosidade, e muito, pois Serpa é apelido genuinamente português. Embora pouco ou nada se ouça falar dele ou da sua obra na ditosa lusa praça, fiquem desde já a saber que Enrique Serpa é considerado um dos mais importantes escritores e jornalistas cubanos da centúria de novecentos.
Nascido com o dealbar da mesma, em 1900, para sermos exactos, tem em “Contrabando”, romance publicado em 1936, a sua obra de referência. Consideram-na os críticos da casa “um clássico da novelística cubana”, que eu saiba, nunca editado em Portugal, embora haja, pelo menos, uma edição brasileira do dito. O seu conto “Barbatanas de tubarão” é “obrigatório em qualquer antologia do conto cubano”, nas palavras do crítico literário Imeldo Álvarez. Considera ele que “antes de Carpentier e de Lezama Lima, os três melhores romances de autores cubanos eram ‘Pedro, o negreiro’, de Lino Novás Calvo, ‘Homens sem mulher’, de Carlos Montenegro, e ‘Contrabando’, de Enrique Serpa”. Tudo indica que o seu conto “Agulha”, publicado na revista Carteles, em Maio de 1934, e posteriormente no livro “Felisa e eu”, de 1937, serviria de inspiração a Ernest Hemingway para escrever “O Velho e o Mar”. O próprio Hemingway, que travou conhecimento com Serpa no El Floridita, restaurante da velha Havana, afamado pelos seus pratos de peixe, depois de ler “Contrabando”, confessou-lhe que o considerava “o melhor escritor da América Latina”, tendo-lhe depois perguntado porque razão “perdia o seu o tempo como repórter e não se dedicava a escrever romances”. Sabiamente retorquiu o cubano: “Porque aqui não pagam vinte mil dólares por um pequeno conto adaptável ao cinema, e a minha família e eu temos de comer”.
Pelos vistos, o autor do “Por quem os sinos dobram” não era o único cliente famoso do El Floridita, estabelecimento frequentado por muitas gerações de intelectuais e artistas cubanos e estrangeiros, entre eles Ezra Pound, Graham Greene e John Dos Passos, outra lusa referência, esta de latitude mais setentrional. Senhor de avultados predicados, fosse como jornalista, fosse como escritor, era nos mares encapelados da crónica que Serpa melhor navegava. Deixou nas páginas das revistas Carteles e Bohemia, e no jornal El Mundo, das melhores crónicas jamais escritas em Cuba. Porém, o facto de entre 1952 e 1958 ter sido assessor de Imprensa da embaixada cubana em Paris colocá-lo-ia sob o pidesco escrutínio dos “comissários culturais da revolução”. Apesar das suas origens humildes e das proletárias profissões de juventude como sapateiro, tintureiro, tipógrafo e trabalhador da cana-de-açúcar, e ainda da sua amizade com o poeta comunista Rubén Martínez Villena, a verdade é que o regime nunca lhe perdoou o cargo de “diplomata durante a época de Batista”, censurando-lhe o “seu passado burguês”. Até o amigo mais chegado, Manuel Cofiño, lamentaria o facto de Serpa, “enredado na estrutura burguesa”, não ter abordado com profundidade os problemas sócio-económicos e ter-se limitado a “dar-nos imagens periféricas, quase turísticas, embora de uma plasticidade indiscutível”. No fundo, criticavam Serpa por não aderir abertamente ao então vigente realismo socialista, um pouco como os nossos escritores neo-realistas fizeram com Virgílio Ferreira por este ter tido a coragem de remar contra a maré e, por isso, ter sido muito melhor que os demais.
Graças a Deus que Serpa recusou submeter-se, senão teria passado para a história como um simples escritor do regime, mero redactor de panfletos e comunicados oficiais. Apesar da sua rebeldia, Enrique Serpa (ao contrário de tantos escritores proscritos) consta no Dicionário da Literatura Cubana, elaborado em 1984 pelo Instituto de Literatura e Linguística da Academia Cubana de Ciências, instituição onde está guardada a sua biblioteca pessoal. Tudo o que resta do local onde Enrique Serpa passou a maior parte da sua vida e onde viria a morrer, em Dezembro de 1968, “o número cinco da Altarriba, no bairro de Havana de Jesús del Monte”, é uma casa arruinada e alguns pertences que a filha, Clara Elena Serpa, agora vetusta senhora, religiosamente guarda. Do espólio constam alguns contos dactilografados, ainda inéditos. Nas paredes exteriores, “prestes a serem devoradas pela vegetação”, como nota o jornalista Luis Cino Alvarez – evocador da memória de Serpa – não há uma única placa que recorde tão ilustre personagem.
Não muito longe dali deparo com outro marco da lusitanidade. Refiro-me à rua Aguiar, dona de alguns dos edifícios mais emblemáticos de Havana. Deve o nome a Don Luis José de Aguiar, regedor do “Ayuntamiento de La Habana” e bravo coronel que de forma admirável defendeu a cidade em 1762. Esse “criollo”, nascido em 1710, comandou um grupo de quinhentos soldados e 150 escravos que, inicialmente entrincheirados no bastião defensivo de La Chorrera e depois na praça de San Lazaro, travou a tropa inglesa, imensamente superior em número e qualidade bélica. Durante os onze meses de ocupação militar britânica, Aguiar e os seus rebeldes mantiveram-se constantes na resistência. O cerco de Havana prolongou-se de Março a Agosto de 1762, como parte da Guerra dos Sete Anos, no decorrer da qual as forças britânicas sitiaram e capturaram a cidade, à época importante base naval espanhola nas Caraíbas. Havana seria posteriormente devolvida à Espanha na sequência do Tratado de Paris de 1763, que oficializaria o fim do conflito. Honra a memória deste militar cubano de ascendência lusitana o “El Comedor de Aguiar”, um dos restaurantes mais emblemáticos da cidade, instalado no Hotel Nacional.
Aguiar viveu na rua que hoje tem o seu nome, mais especificamente numa casa que faz esquina com a rua Tejadillo. Não longe dali situava-se o açougue do rei, daí a designação Carniceria. A rua Terceros, por seu turno, traduz a proximidade da capela da Ordem Terceira de Santo Agostinho, embora não haja explicação fidedigna para que a rua O’Reilly seja designada de “Anticristo”. Talvez por ter sido considerada, até 1958, a rua do dinheiro, a “Wall Street de Havana”. Aí tinham as suas sucursais nove bancos e um elevado número de companhias, seguradoras e associações comerciais. Eram edifícios majestosos com fachadas de colunas imponentes que não deixavam dúvidas quanto à solidez, riqueza e perseverança das instituições ali albergadas. Entre outras, a Bolsa de Havana, a Câmara de Comércio da República – onde funcionaria mais tarde o Hotel Raquel – e as câmaras de comércio espanhola, italiana, francesa, britânica, alemã e norte-americana. A câmara de comércio da China estava sedeada no número 16. A rua Aguiar abrigava ainda uma centena de escritórios de advogados e nela residiram alguns dos peixes graúdos do regime “batistano”: um vice-Presidente da República, um primeiro-ministro, um presidente da Câmara dos Representantes e um ministro das Finanças.
No número 569 da rua Aguiar confeccionavam-se os lençóis “Palacio”, cujo slogan comercial rezava assim: “Lençóis Palacio. Suaves como a seda e fortes como o linho. 360 lavagens de garantia”. Tudo isto nos recorda no seu livro “O que fomos e o que somos”, José María de la Torre, geógrafo, arqueólogo, historiador e pedagogo novecentista, que dedicou parte de vida ao estudo da história local.
Joaquim Magalhães de Castro