Passeios por Havana – 3

A sínica costela de Fulgêncio

Prossigo a minha caminhada ao longo de um El Malecon pouco movimentado e o próximo edifício a chamar-me a atenção (a surpreender-me, será mais correcto dizer) é um arranha-céus envidraçado de uma vintena de andares. Em primeiro plano, em jeito de saliência de fino pano, bem arvorado, avisto o celebérrimo estandarte das estrelas e das listras. Eis a embaixada norte-americana! E porque me surpreendo eu? Sim, é verdade. Por pouco esqueço o recente reatamento das relações diplomáticas entre os desavindos propínquos. O cenário serve na perfeição, até porque o enquadro no visor da máquina fotográfica juntando-lhe os automóveis descapotáveis que com regularidade passam na estrada. Ao contrário do que acontece com as restantes representações diplomáticas estado-unidenses no estrangeiro, não topo qualquer medida adicional de protecção. Tão só uma guarita branca com um funcionário de uma empresa de segurança lá dentro e, nos jardins interiores, uns quantos empregados de limpeza.

Impossível falar dos Estados Unidos sem mencionar um dos seus mais fiéis serventuários. Falo de Fulgêncio Batista, Presidente de Cuba em duas ocasiões e senhor de uma costela sínica. Aliás, todo ele era uma mescla de cromossomas. Além das chinesas tinha também raízes castelhanas, vínculos à negra África e, acima de tudo, uma forte ligação genética ao povo taíno, a tribo indígena das Caraíbas por excelência. Verdadeiro camaleão, esse antigo sargento do exército oriundo de uma modestíssima família começou por vestir a pele de revolucionário, participando na intentona militar que derrubaria o poder autoritário de então e inventaria uma curiosa fórmula política. Chamaram-na “Pentarquia de 1933” e seria gerida por cinco Presidentes, entre os quais um tal de Guillermo Portela, advogado e diplomata com uma mais do que provável ascendência lusitana.

Embora não fizesse parte do quinteto governativo, Batista controlava as forças armadas. Foi o suficiente para que sete anos depois chegasse ao mais alto cargo da nação e aí permanecesse toda uma legislatura. Numa segunda fase, em 1952, Fulgêncio Batista foi directamente ao assunto. Sabendo de antemão que podia contar com a ajuda financeira e militar dos Estados Unidos, retirou-se da corrida presidencial e assumiu-se como incondicional ditador. Em troca, abriu o mercado aos merceeiros do tio Sam, mandando às urtigas a Constituição de 1940 e anulando todos os direitos civis, inclusive o direito à greve. Ao estabelecer uma sólida aliança com os plantadores de cana de açúcar, Batista alargaria, de uma forma até então nunca vista, o fosso entre os ricos e os pobres. Toda essa indústria passou para as mãos norte-americanas, e as terras aráveis, setenta por cento delas, possuíam-nas os estrangeiros. Os Estados Unidos eram de tal forma influentes em Cuba que o seu embaixador ocupava o segundo lugar na hierarquia, sendo às vezes até mais importante do que o próprio Presidente. Havana tornou-se o pasto favorito dos dons da máfia ianque, senhora dos negócios das drogas, dos jogos de fortuna e azar, e da prostituição. É claro, logo transpirou o descontentamento popular, com frequentes tumultos e manifestações estudantis. Batista não só tudo reprimiu como impôs a mais estrita censura. A extrema violência exercida pela polícia secreta do regime teve como consequência a morte de mais de vinte mil pessoas.

Corrupção generalizada, brutalidade policial, indiferença do Governo face às necessidades da grei, eis os ingredientes ideais para um convite aberto à sedição. E ela não tardaria a chegar. Protagonizou-a o Movimento 26 de Julho, liderado pelo estudante de Direito Fidel Castro, que após de anos de guerrilha rural e urbana pôde, por fim, afastar do poder Batista, na célebre noite de Ano Novo de 1959. Este, face à recusa americana em o acolher, acompanhado dos mais chegados e de uma colossal fortuna, enfiou-se na República Dominicana sob o manto protector do seu aliado Rafael Trujillo. Numa segunda fase, Batista acabaria por encontrar asilo político em Portugal, onde viveu, primeiro, na ilha da Madeira e, depois, no Estoril. A guarida dada a tão ilustre sicário permanece uma das nódoas do regime de Oliveira Salazar. Batista habitaria ainda em Espanha, onde manteve actividade comercial até à sua morte a 6 de Agosto de 1973.

A respeito do prédio cinzento que agora tenho pela frente, o Giron, diz-me um transeunte ter sido «construído por um engenheiro da Alemanha Oriental». Ao inteirar-se da minha nacionalidade de imediato garante o cubano ter um amigo português. Não sei porquê, mas parece-me ser um desses contistas do vigário de mira apontada aos mais distraídos, como acontece muito na Etiópia, país com gente aparentemente muito simpática mas perante a qual convém jamais baixar a guarda pois nunca se sabe o que pode sair dali. A figura equestre que se segue é a de Calixto García, “general das três guerras”. Ou melhor, era, pois retirado foi do seu pedestal, para obras de restauro, após o temporal do ano passado, como retirados foram os dois canhões de bocas apontadas para as águas da baía. Ambos já lá não regressarão, indo ocupar no futuro uma rotunda na Quinta Avenida. Assume a estátua de Calixto uma atitude desafiadora, pronto a reunir as tropas. Dizem os entendidos que o facto de as quatro patas do cavalo estarem apoiadas na base do monumento representa a morte natural (em oposição à morte em combate) da figura histórica. De facto, Calixto García morreu em Washington, em 1898, onde foi delegado do Exército de Libertação em nome da República de Cuba em Armas (movimento que lutou contra o poder colonial espanhol) para dialogar com o Governo norte-americano.

Por detrás da praça, há uma bancada com pala a ameaçar derrocada. Imagino-a cheia de gente, nos buliçosos tempos pós-revolução. Faixas de pano recordam o ano 60 da dita (a celebrar em 2019) e as obras em curso destinam-se a assinalar os 500 anos da fundação de Havana, em 2020. Conhecida pelos espanhóis, em 1514, como Villa de San Cristóbal de la Habana, a localização actual da capital cubana só aconteceria em 1520, ano oficial da fundação. Chamar-lhe-ia um dia Cidade das Colunas o consagrado escritor Alejo Carpentier, certamente devido à abundância de arcadas e à mistura de estilos arquitectónicos, sejam moradias de tipo colonial ou palacetes neo-clássicos, arte deco, similares aos que vemos em Lisboa. É o que constato de perto quando decido entrar num dos bairros interiores com carros clássicos de uso comum para o cidadão estacionados nas bermas. Estão, como é de esperar, em bem pior estado que os congéneres disponíveis para os turistas. A pintura, porém, permanece intacta. Nada de ferrugens à vista. São como certos velhinhos prestes a morrer, mas com dignidade. Em contraste, filas de clássicos reluzentes e uns quantos calhambeques, modelos muito mais antigos do que as beldades das décadas de 1940 e 1950, aguardam possíveis clientes.

Na sala de cinema Milan, ali mesmo ao lado, decorre mais uma edição do Festival de Cinema de Verão e nas paredes anónimas há anúncios a aulas de salsa. Vendedores ambulantes de frutas e legumes aguardam o cliente em frente a pequenos mercados onde se vende mais do mesmo. Num e noutro caso, preços à vista e em pesos cubanos, cuja unidade se multiplica por 24 para chegar ao total de um peso convertível, que, por sua vez, equivale ao dólar norte-americano. É a época das mangas. Enormes e suculentas, doces como poucas. Das melhores mangas que já comi. A senhora por detrás da banca diz que essa fruta está a “um dólar” a libra, querendo dizer com isso que está a um peso convertível. Só que eu não entendo assim. Apresento-lhe uma nota verde e ela recua, assustada, acenando negativamente. Com gestos ainda, pede que volte a meter o dólar na carteira e dela retira uma nota de um peso convertível. Quem foi que disse que se passava fome em Cuba? Não faltam aqui frutas e legumes, de produção biológica e a preço popular. Pepino a cinco pesos a libra, alho a quatro pesos a cabeça, cebolinha a cinco pesos o molho, ananás a dez pesos a unidade, etc. Ilustram as paredes destes mercados de bairro, quais depósitos de micro-cooperativas, murais revolucionários com as habituais figuras políticas. Saliento o curioso logótipo da Liga da Juventude Comunista, “estudo, trabalho e fusil”, acompanhado das efígies de Guevara, Cienfuegos e Julio Mella, este último vítima de assassinato político (como tantos outros) por ter ousado desviar-se da ortodoxia do partido.

Joaquim Magalhães de Castro

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