Páscoa 2016

Do falado ao escrito, os primeiros livros do Cristianismo

Numa terra perdida do Médio Oriente, uma novidade inaudita empolgou um punhado de gente a sair para os quatro cantos do mundo com uma mensagem: Jesus Cristo ressuscitou! O início começou com um grande falatório e era inevitável a redacção de vários livros com essa história magnífica.

Jesus Cristo foi um acontecimento que deu tanto que falar que foi preciso escrever sobre Ele. A sua vida incrível, os derradeiros dias da sua morte, a sua gloriosa ressurreição, proporcionaram uma luz e um sentido tais que fizeram dos discípulos autênticos Apóstolos, ou seja, enviados ao mundo inteiro para comunicar aquele acontecimento. É por isso que «Jesus Cristo dá origem a uma literatura abundante», afirma com clareza Francine Culdaut, professora do Instituto Católico de Paris, no livro “A la naissance de la parole chrétienne”.

No início, não havia qualquer livro ou texto escrito sobre Jesus de modo fixo e canonizado como a Bíblia que temos actualmente. E a maneira mais usada para passar a mensagem era a palavra dita. Pode parecer ridículo, mas na prática a difusão do Evangelho começou no “diz-que-disse” de alguém baseado no “aconteceu-me-isto-e-aquilo” de outro alguém. Mas estas palavras ditas eram levadas a sério: o hábito de memorizar e de contar memórias era uma autêntica arte praticada pela grande maioria das pessoas. De acordo com o historiador e teólogo Armand Puig, as crianças com sete anos memorizavam Homero! (“Jesus, uma biografia”, PAULUS Editora).

A ajudar a essa difusão, as histórias sobre Jesus são realmente magníficas e muito importantes, daí que os Apóstolos estivessem mais interessados em transmitir a sua experiência de vida com Jesus vivo e ressuscitado do que em comunicar uma verdade ou uma teologia. Vemos, por exemplo, como Pedro e João, depois de presos, depois de açoitados duramente e, por fim, depois de ordenados pelas autoridades a não falar sobre Jesus em público, tiveram o desplante de dizer a essas mesmas autoridades: «Não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos» (At., 4, 20). De facto, a experiência que tiveram, aquilo que eles viram e ouviram foi tão espectacular que não tinham receio de se arriscar a ser novamente presos e açoitados. Enquanto os Apóstolos eram vivos não há registo de nenhum documento escrito sobre Jesus. Não há referências literárias que o provem ou afirmem, e ainda não se descobriu nenhum vestígio de algum manuscrito dessa ordem. Com efeito, da oralidade até à fixação por escrito o processo decorreu não de maneira programada, mas fruto da necessidade. Os primeiros escritos terão sido as Cartas de Paulo, que procuravam consolidar a mensagem de Jesus e acima de tudo resolver problemas pastorais.

É muito interessante ver a reacção dos efésios quando Paulo os visitou e lhes perguntou: «Recebestes o Espírito Santo?» «Nem sequer ouvimos dizer que existe Espírito Santo!», responderam eles (At., 19, 1-7). Nem sequer tinham ouvido falar. “É normal”, terá pensado Paulo antes de os baptizar no Espírito Santo. Pouco tempo depois, estas Cartas já serviam outras comunidades cristãs, sendo lidas em público como ensinamento. A Segunda Carta de Pedro atesta bem esta realidade: nas recomendações finais, Pedro alude às tais Cartas de Paulo, mencionando cuidado ao lê-las, pois elas abordam temas mais complexos que têm de ser bem interpretados para não dar aso a erros (2Pd., 3, 15-16).

Na mesma altura, à medida que os Apóstolos desapareciam, a maioria como mártir, houve receio de perder um tesouro muito importante: a memória viva e autêntica dos Apóstolos sobre Jesus Cristo. Foi então que os cristãos começam a pôr por escrito o que viram e ouviram. Deste modo nasceram os Evangelhos. Os estudiosos não estão de acordo quanto ao processo, mas é forte a argumentação de que terá havido um primeiro manuscrito, denominado Q (inicial da palavra alemã “quelle”, que significa “fonte”), que terá sido usado por Marcos, Mateus e Lucas para a escrita dos seus Evangelhos. O Evangelho de João, mais tardio, terá sido escrito em Éfeso por volta do ano 100. Outros textos foram sendo redigidos, mas apenas estes quatro permaneceram intactos e eram usados pela maioria das comunidades cristãs. Ireneu de Lyon, no séc. II, reuniu o chamado “cânone”, o conjunto “oficial” de livros da Igreja, para o qual adoptou dois critérios principais na escolha dos livros: primeiro, o conteúdo tinha de estar de acordo com a doutrina dos Apóstolos fixada no Símbolo dos Apóstolos (o Credo); em segundo lugar, os livros tinham de ser usados na tradição viva da Igreja, ou seja, na vida das comunidades cristãs.

Há ainda muitas questões em aberto sobre os primeiros textos, as Cartas e os Evangelhos. Seja na forma como se deu a redacção, quem foram os seus autores, o que se alterou nas várias edições, traduções e cópias de que foram alvo. É um tema que dá sempre que falar. E escrever. Sendo que a preocupação principal é sempre a de saber quem foi Jesus Cristo.

PAULO PAIVA

In Síntese

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