O rapto da Noiva do Deserto
Os inclassificáveis mercenários do Estado Islâmico ocupam há mais de um mês a milenar Palmyra, cidade semita com raízes no Neolítico onde medraram, entre outras, as civilizações selêucida e romana. Como consequência dessa agressão, parte substancial do seu riquíssimo património foi danificado ou irremediavelmente destruído. Doravante, e tendo em conta o tenebroso historial do ocupante, teme-se o pior.
Visitei Palmyra em 1998, no âmbito de uma reportagem sobre a Síria para uma conhecida revista de viagens de Portugal. Na altura, pese a dificuldade em obter visto, o país de Hafez el-Assad era um destino bastante apetecível. Hordas de turistas, maioritariamente dos países árabes, com particular destaque para a Arábia Saudita, percorriam os riquíssimos espaços arqueológicos daquela que era considerada a jóia do turismo sírio, afamado entreposto de caravanas, digna do epitáfio “Noiva do Deserto”.
A uns quilómetros de Palmyra, em pleno deserto ainda, avistavam-se já, ao longe, as colunas do templo de Baal – um dos mais importantes edifícios religiosos do Médio Oriente – sobressaindo por entre as copas das palmeiras que dariam nome à cidade. Depois, de um lado e do outro da estrada, iam surgindo marcos distintivos da presença imperial romana.
Ao apear-me do autocarro vindo de Homs, logo me percebi que a coisa pública da parte moderna da urbe estava inteiramente direccionada para o turista. Os proprietários dos hotéis, “welcomes” e “as you like” a torto e direito, tentavam impingir aos recém-chegados os quartos mais caros. O dono do Omayad Palace, por exemplo, começou por concordar com os 150 rials da tabela, para logo depois tentar transferir-me para um cubículo húmido e mal cheiroso. Isto, porque entretanto tinham chegado três outros estrangeiros com ar de quem podia pagar mais e que aparentavam estar juntos. Afinal, não estavam. Nem quiseram ficar no hotel. Perante isto, o homem transfigurou-se num instante, assegurando-me que o que mais desejava era ver-me feliz. Para o comprovar ofereceu-me chá, não quis que lhe pagasse a sopa de grão-de-bico entretanto consumida, bateu com a cabeça no meu ombro (dizendo repetidamente que eu era um bom homem), e, pedindo-me mil desculpas, ofereceu-me dois postais do espaço arqueológico para eu enviar à família.
A rua principal de Palmyra era um vespeiro de ofertas não solicitadas e perguntas inconvenientes. Escutei mais “welcomes” e “come ins” num par de horas que durante o resto da estada no país. As crianças mostravam-se particularmente irritantes e os adultos, ociosos, pareciam nada ter para fazer senão olhar a rua principal. Expectavelmente, a minha primeira impressão de Palmyra não foi a melhor.
Recordo, no entanto, com imenso prazer as solitárias caminhadas até ao castelo medieval de Fakhr-al-Din al-Ma’ani, construído pelos mamelucos. Daí pude apreciar, em toda a sua extensão e dimensão, os diferentes conjuntos de ruínas representativas das civilizações que ali deixaram marcas, embora nuvens de areia tapassem ocasionalmente a árida paisagem. Depressa se esfumaria o devaneio. Precisamente um quarto de hora antes do pôr do Sol, sete autocarros despejaram junto ao dito castelo roqueiro dezenas de turistas espanhóis. Tagarelando ruidosamente, fotografaram e aplaudiram, uivando quais lobos afaimados à medida que o Sol se escondia por detrás das montanhas. Difícil imaginar cena mais caricata.
Além dos “invasores” espanhóis (esse dia eram espanhóis, no dia seguinte seriam, quiçá, alemães) por lá andavam outros visitantes ocidentais e um outro japonês. Chegavam a pé, em táxis, nas traseiras de pequenos tractores, em tuk-tuks, nas caixas de carrinha ou até em motorizadas.
Distribuído por sete ou oito salas, num rés-do-chão de um edifício público, o espólio do museu de Palmyra reflectia uma variedade de artefactos resgatados das ruínas que nos falavam de um tempo em que os habitantes do oásis adoravam divindades astrais. Samash, o deus solar; Aglibol, o deus lunar; Beelsahmene, o deus supremo. Aposto que os norte-americanos foram buscar inspiração à áurea da divindade Malakbel – evocativa dos raios solares – quando idealizaram a sua estátua da Liberdade.
Blocos de pedra com altos e baixos-relevos contendo trechos do alfabeto de Palmyra (dialecto aramaico ocidental), uma imensa variedade de jóias em ouro e prata, peças de cerâmica e estátuas arquétipos da beleza local – com aquele típico nariz aquilino das mulheres sírias – juntavam-se a diversas cabeças e torsos de mármore presos às paredes verdes das salas. As escassas informações, em papel dactilografado ou simplesmente rascunhado, estavam em Árabe, Francês e Inglês. As designadas “múmias de Palmyra” – acompanhadas por fragmentos de tecido (com motivos decorativos inspiradores dos panos de hoje), sandálias de couro e um fémur de um anónimo – tinham direito a sala própria.
Soube recentemente pelas notícias que muitas dessas relíquias teriam sido transferidas para museus em Damasco antes da chegada dos salafrários. Infelizmente, devido à sua dimensão, nem tudo chegou a ser retirado, sendo certo que muitas das peças entraram já no rendoso circuito internacional de tráfico de antiguidades. Para inflamar os espíritos mais fundamentalistas, e iludir as aparências, foi sacrificado, à marretada e a golpes de picareta, a imponente e bela estátua do Leão de Al-lat, com dois mil anos e três metros de altura, símbolo maior do culto ao astro-rei.
Joaquim Magalhães de Castro