A Igreja Católica para lá da Cortina de Ferro
Muitas vezes se tem falado na Europa do Pós-Guerra ou seja, após 1945. Da divisão da Europa, em blocos, antagónicos. Palcos da Guerra fria, como se existisse uma muralha a separar o Ocidente do Oriente, ou Leste. A Cortina de Ferro, como se lhe chamava. Uma Europa como palco de guerra entre 1939 e 1945, como antes já fora tantas vezes, prolongava-se numa guerra surda e invisível entre superpotências. A velha Europa, histórica, artística, religiosa, científica e culturalmente da vanguarda, tornava-se cada vez mais dividida e esquecida do passado.
Mergulhara-se nas trevas nas Grandes Guerras. Depois, caíra-se na divisão, no braço de ferro, na guerra psicológica. No abismo sempre a um passo. As referências eram outras. O material sobrepunha-se ao imaterial. Onde ficou a Igreja neste tempo, depois de lambidas as feridas da guerra e sacudidos os fantasmas, substituídos por novos, que reaparecem ciclicamente… Na boa e velha Europa… onde ficou a Igreja? Ou… onde está?
A Ocidente, lá continua, com outros valores e estatísticas. A Leste? Vamos então tentar fazer um diagnóstico. De forma global, genérica, nunca desapareceu o sentimento religioso na Europa comunista, no Bloco de Leste, na órbita soviética, como lhe quiserem chamar. Nunca desapareceu a Igreja. A Católica. Como as Ortodoxas. Os credos protestantes também não, mas quase desapareceram. Mas as cifras mudaram. Pujança, força, luta, resistência, identidade reforçada: falamos da Polónia. Ou da Lituânia também, em menor escala. Um pouco menos a Eslováquia (até 1992 na Checoslováquia, com a República Checa), como a Hungria. Se resumíssemos já as nações balcânicas, da antiga Jugoslávia, apenas a Croácia se afirmara sempre como nação católica, até hoje, como a Eslovénia, ou em menor grau a Bósnia-Herzegovina (população croata) ou o Montenegro, muito menos a Sérvia e a Macedónia, os católicos são ainda hoje minorias estáveis e consistentes. Mas minorias. Como na Bulgária, na Roménia ou nas nações europeias desmembradas da antiga União Soviética, a começar pela Rússia (pouco mais de 500 mil subsistem mas crescendo diga-se…), a Bielorrússia, a Letónia e a Estónia (estas mais luteranas, na esfera cristã, ou ortodoxas minoritariamente, mas acima da população católica), como as repúblicas caucasianas da Geórgia e Arménia, já que os católicos romanos no Azerbaijão ainda são mais residuais que naqueles.
As minorias russófonas ou ucranianas sempre levaram consigo os seus ritos ortodoxos, como os alemães, húngaros, croatas e checos nos outros países contribuíram sempre para a força da Igreja Católica na antiga Europa comunista. Mas desde a Grande Guerra (1939-45) ou depois na década de 90, com a expatriação dessas minorias para as “suas nações históricas”, com as redefinições da geopolítica e dos mapas da Europa, a força da Igreja Católica diminuiu em países como a Roménia ou a República Checa, por exemplo, a par da secularização e laicização, ateização dir-se-ia, que os regimes marxistas-leninistas impuseram para lá da Cortina de Ferro.
A proibição, a intolerância, a perseguição, a tortura, os assassinatos e até dizimação pontual, marcaram o cenário difícil da sobrevivência da Igreja Católica no Leste da Europa. A erosão que a política impôs é a grande causa do abaixamentos dos números de católicos no Leste da Europa. Mas não apenas. Mas também funcionou ao contrário. Ou seja, como estímulo. Falamos claro da Polónia, da Lituânia. Em boa parte da Hungria ou da República Checa, mais da Croácia e da Eslovénia.
Não esqueçamos que em vários países a dominância do Cristianismo Ortodoxo imperava. Sobreviveu, lutou e foi mártir também. Mas a Igreja Católica conheceu tempos piores. Ser católico era uma conotação com o Ocidente, com um poder externo (Roma), poder ser acusado de espionagem ou subversão. Ser católico significava apego e ligação aos antigos imperialismos alemão ou austríaco, de tempos que se queriam esquecer, por causa da Guerra e não só. Os sudetas alemães eram católicos, a diáspora alemã em todo o Leste, como a Húngara eram-no também. Vejam-se por aí os estigmas… Ser católico passou a ser um acto de coragem. De clandestinidade, de regresso a tempos de perseguição, de migração forçada. Muitos foram embora.
Na Polónia ficaram, a população católica sempre foi e é avassaladoramente dominante (mais de 90%), com forte e assumida participação comunitária e litúrgica, missionaria e um alfobre de vocações, que reforçam igrejas católicas em dificuldades no Leste ou em expansão na Escandinávia. Mais de 200 sacerdotes polacos trabalham na República Checa, por exemplo, onde são 18% dos efectivos de presbíteros. Para se avaliar a importância da Igreja na Polónia basta recordar o saudoso padre Karol Józef Wojtyła (1920-2005), mais conhecido como João Paulo II (Papa, 1978-2005), provavelmente o mais importante e influente pontífice da história moderna da Igreja Católica Apostólica Romana. Mesmo oriundo da catolicíssima Polónia, conheceu as agruras da história do seu país, a fome, a guerra, o Holocausto, o cumprir de uma vocação na clandestinidade, todo o processo de formação envolto em dificuldades. Mas como a Igreja Católica na Polónia, a perseverança, a resiliência e a abnegação crística foram as palavras de ordem e o seu ideário de vida. Ser católico foi uma forma de resistência na Polónia, como em partes e épocas da história da Checoslováquia, ou da Hungria. Foi a força e o tónico para a resistência, para a afirmação. Foi a voz da solidariedade e da coragem, num mundo de aço e betão fio e inerte, esmagador. De formação de sacerdotes e vocações religiosas femininas, sempre numerosos estes indicadores, com grande afã missionário.
Na Eslováquia, na Lituânia e na Croácia os católicos continuam fortemente maioritários também, como na Polónia, enquanto que na República Checa enfrentam dificuldades (10% da população, que é de dez milhões de habitantes). Na antiga Alemanha Democrática (RDA), hoje unificada na Alemanha, eram minoritários, como hoje, onde a tradição luterana sempre tivera mais força. Por toda a Europa de Leste, onde antes se estava atrás da Cortina de Ferro, a Igreja Católica subsiste, com ou maiores dificuldades, mas em sintonia com a Europa e com o mundo católico, de que faz parte de forma efectiva e plena, visando o rumo de um futuro que parece poder ser animador. Com o exemplo da chama terna e afável, determinada, que foi João Paulo II, o maior símbolo da Igreja a Leste… e não só!
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa