Sequeira, Koay e Camus, uma vida de entrega à Companhia de Jesus
O padre Yves Camus entrou para as fileiras da Companhia de Jesus quatro anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, estava a Europa ainda povoada de ruínas e de escombros. Os padres Luís Sequeira e Gregory Koay – o primeiro em Portugal e o segundo em Hong Kong – seguiram-lhe os passos vinte anos depois, em 1969. Os três sacerdotes são esta sexta-feira homenageados numa missa de Acção de Graças que traz a Macau o Superior-Geral da Companhia de Jesus, o padre Arturo Sosa. O CLARIM falou com os jubilados para perceber como tudo começou.
O calor aperta e os três homens abrigam-se momentaneamente à sombra de uma árvore de folhas esquálidas, entrecortadas pela fúria de um sol impiedoso. Gregory, o mais baixo, fica de um lado, Luís posiciona-se no outro e no meio de ambos está Yves, um gigante bonançoso de olhos claros e semblante tranquilo. Os três deitam os olhos à objectiva, esboçam o arcabouço de um sorriso e antes do singular alinhamento se dissipar Gregory avança com o repto. «Espero que volte daqui a cinquenta anos para nos entrevistar. Que jubileu é que seria?», pergunta, antes de soltar uma gargalhada branda.
Em conjunto, os padres Yves Camus, Luís Sequeira e Gregory Koay congregam 170 anos de dedicação à Companhia de Jesus. A proeza é ao fim da tarde desta sexta-feira assinalada, com a realização de uma missa de Acção de Graças na igreja do Seminário de São José. A celebração traz a Macau o Superior-Geral da Companhia de Jesus, o venezuelano Arturo Sosa, que vai presidir às cerimónias, gesto que o padre Luís Sequeira entende ser uma «gentileza e uma predilecção de Deus».
Nascido em Lisboa e radicado em Macau desde 1976, o antigo Superior da Companhia de Jesus no território olha para a efeméride que hoje celebra como um passo mais de um percurso de consolidação que se foi fortificando com o passar dos anos. «O meu processo de maturação é daqueles que avança passo a passo, lentamente a descobrir o gosto de ser como eles, os Jesuítas, e perceber, ao mesmo tempo, que me é mantido isso por uma certa seriedade de vida cristã: ir frequentemente à missa, ter o meu tempozinho de silêncio e de meditação que me fez maturar», admite. «Não sou daqueles que tiveram como que uma chamada quase repentina ou forte em determinado momento. Não! O meu percurso foi um percurso de maturação passo a passo», insiste.
O agora jubilado padre Luís Sequeira iniciou o seu percurso no seio da Companhia de Jesus em 1969, semanas depois do Homem ter caminhado na Lua pela primeira vez, mas a convicção de que o sacerdócio era o caminho que lhe estava reservado só emergiu depois. O jovem Luís poderia ter sido advogado e até jogador do mais popular dos clubes portugueses, o Benfica. «Podia ter sido alguém no sentido da advocacia, que é algo de que gosto muito. Não quero dizer que tenha avançado muito no estudo do Direito, mas gostava. Era também bom atleta. Não só fui campeão nacional pelo Porto, mas também joguei no próprio Benfica e quando me queriam fazer o contrato de juvenil ou de júnior ou lá do que é que era, eu disse-lhes que ia estudar», recorda.
Se bem o disse, melhor o fez. Chegado ao sétimo ano e ainda adolescente, ingressa no noviciado, mas depara-se com obstáculos onde menos os espera encontrar: «No sétimo ano entro para o noviciado e seis meses depois, em Abril, dizem-me: “Olha, é melhor ires dar uma voltinha para amadurecer”. E lá vou eu para Lisboa, para a Universidade e para Direito. Portanto, há aqui um processo de maturação até de um modo assim um bocadinho dificultoso, não é?».
Do outro lado do mundo, Gregory Koay transporta a sua própria cruz. Nascido em Penang, na Malásia, no seio de uma família de chineses ultramarinos, Gregory contraria a vontade do pai e nesse mesmo ano de 1969 inicia a sua caminhada no seio da Companhia de Jesus. «Quando conclui os estudos secundários, no sétimo ano, perguntei ao meu pai se podia ingressar no Seminário e ele disse que não, que não autorizava», lembra o agora sacerdote, acrescentando: «Fui trabalhar. Ensinei numa escola primária durante dois anos. Ao fim desses dois anos, tinha eu 22, voltei a pedir autorização ao meu pai e ele voltou a negá-la. Disse-lhe que tinha esperado pela sua compreensão durante algum tempo e que queria ser jesuíta. E saí de casa com a bênção da minha mãe».
A ruptura familiar acabou por se revelar temporária e teve final feliz. Nas cartas que foi trocando com a mãe nos anos em que permaneceu no Colégio Jesuíta onde cumpriu o noviciado, Gregory foi tomando conhecimento dos esforços empreendidos pelo pai para compreender a decisão que tomara. O esforço coincidiu com uma viagem de descoberta pessoal que culminou com a conversão ao Catolicismo do patriarca da família Koay. «Ele acabou por mudar de ideias ao fim de alguns anos. Não era católico. A minha mãe era baptizada, mas o meu pai não era. Alguns anos depois de eu ter ingressado na Companhia de Jesus, ele decidiu que queria ser baptizado. Neste momento, a família que me resta na Terra é toda baptizada. A única excepção é a minha irmã mais velha, que se juntou à Igreja Baptista», explica.
Dos três sacerdotes que hoje celebram, na igreja do Seminário de São José, uma longa e frutuosa entrega aos ideias da Companhia de Jesus, terá sido em Yves Camus que a chamada de Deus se manifestou ao mesmo tempo de forma mais serena e mais atribulada. «Lembro-me perfeitamente do dia em que a minha família teve de se colocar em fuga no início da Segunda Guerra Mundial, para escapar à invasão dos exércitos alemães. E lembro-me muito bem porque foi a 19 de Maio, o dia em que se celebra a festa de São Ivo, o santo de quem herdei o nome», conta.
Yves Camus passou os anos do conflito em Amiens, cidade que permaneceu sob ocupação dos exércitos do III Reich durante grande parte da Segunda Grande Guerra. Numa família em que as incursões pela carreira eclesiástica eram comuns – um tio de Yves era dominicano – a opção pelo sacerdócio acabou por se revelar natural, não tanto por causa da Guerra, mas apesar dela. «Senti o apelo de Deus muito cedo na minha vida, mas a opção pela Sociedade de Jesus só a consegui discernir no final dos meus anos de educação secundária. Talvez a escolha se tenha ficado a dever à influência – insuspeita, mas aceite da minha parte – de alguns jesuítas que foram muito importantes no meu percurso, particularmente alguns com os quais me cruzei no último ano do secundário», refere o sacerdote francês.
A 1 de Outubro de 1949, há setenta anos, Yves Camus dava os primeiros passos no âmbito de um percurso que o trouxe primeiro a Taiwan e depois a Macau. Pelo meio completou estudos de pós-graduação na variante chinesa do Budismo, estudou de forma aprofundada as tradições espirituais e filosóficas chinesas, coordenou a revisão do gigantesco “Grand Dictionnaire Ricci de La Langue Chinoise” e foi um dos membros fundadores do Instituto Ricci de Macau, ao serviço do qual editou até 2012 a revista bilingue Chinese Cross Currents. Uma vida repleta de concretizações a que esta noite se acrescenta uma página mais. «Para lhe ser franco, nunca senti grande entusiasmo por celebrar aniversários e este não é excepção. Não previa celebrá-lo, não estava à espera de o celebrar, mas não me surpreende que me tenha de submeter a este tipo de cerimónia», assume Yves Camus, com um sorriso bonançoso plasmado no rosto.
Marco Carvalho