«Uma lei que é injusta, não é de todo lei»
É padre, artista e especialista em bioética, com formação em medicina. Nascido em Hong Kong, Joseph Tham equilibra fé, ciência e arte num percurso pessoal que o confrontou, em mais do que um sentido, com as questões fundamentais que enquadram a existência humana. Docente no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, o teólogo argumenta que a resposta da Igreja à crescente secularização das leis e dos costumes passa por um reforço da vivência espiritual dos católicos. O padre Joseph Tham, em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– A exposição “Arte para Deus”, com obras da sua autoria, está patente ao público no Centro Diocesano até 2 de Outubro. Quando é que descobriu esta paixão, este talento para a arte e para a pintura tradicional chinesas?
PADRE JOSEPH THAM –Comecei a pintar aos doze anos e, na altura, creio que foi porque era algo que me agradava e porque se tratava de cultura chinesa, mas também porque era um prazer expressar a beleza dessa forma. Aos quinze anos, a minha família mudou-se para o Canadá, mas eu continuei a pintar. Fui ordenado sacerdote em 2004. Durante cerca de uma década, quando frequentava o Seminário, coloquei a arte de lado. Tinha imenso trabalho, muito pouco tempo livre e senti que as pessoas talvez não entendessem a arte chinesa. De qualquer modo, essa pausa não foi prejudicial porque quando retomei a actividade artística compreendi que se tratava muito mais de uma expressão da minha interioridade. Não é algo que crio intencionalmente. O meu meio de expressão é a pintura e a caligrafia chinesa, mas quando sinto o impulso para criar os conteúdos é algo que vem de dentro… dos meus sentimentos. Fundamentalmente, o que que quero expressar, parece-me, é uma mensagem cristã, porque é isso que eu faço durante parte do meu tempo, através das minhas orações, da minha relação com Deus, da minha necessidade de agradecer a Deus e de O amar. São pulsões que se libertam muito naturalmente.
CL– Esta exposição já foi vista em vários países e regiões, onde foi sempre bem aceite. O sucesso alcançado pela mostra é algo que o surpreende? Ou não?
P.J.T. –Em certa medida, não sei muito bem o que significa ser bem-sucedido, mas acho que as pessoas ficam muito impressionadas pela mensagem subjacente que eu tento transmitir através da pintura tradicional chinesa, da caligrafia ou, de modo geral, pela cultura, porque é algo que não se vê com muita frequência. As pessoas ficam surpreendidas nesse sentido. Para mim, é muito encorajador perceber que estou no caminho certo, que não estou a fazer algo estranho. Normalmente as pessoas sentem que isto não só é algo de original, como também – e de certo modo – necessário na Igreja. Diria que se trata de uma forma de inculturação. Matteo Ricci iniciou esse processo quando veio para Macau e para a China e fê-lo por meio de convergências e semelhanças entre as crenças e os costumes locais, o Confucionismo e o Cristianismo, adoptando os aspectos positivos e deixando de parte os negativos. É isto a inculturação.
CL– Antes de ser ordenado sacerdote trabalhou como médico. Os médicos e os profissionais de saúde estão sujeitos a um número cada vez maior de dilemas no exercício da profissão…
P.J.T. –Esse é um tema que me é bastante grato. O foco da minha tese de doutoramento era precisamente esse, o da secularização da bioética e da mudança que se operou, o da passagem de um tempo em que a teologia tinha bastante influência para uma era em que quase não tem nenhuma. O principal desafio? Eu colocaria a questão desta forma: é a concepção do que é certo e do que é errado e a concepção de quem é o Homem ou do que constitui a pessoa humana. Tudo pode ser reduzido, um pouco mais ou menos, a isto. Há um terceiro aspecto, que é o lugar da tecnologia e a forma como nos relacionamos com ela. O primeiro aspecto tem que ver com os conceitos de certo e de errado e com a forma como foram influenciados ou desafiados por um mundo que se tornou cada vez mais relativista, no sentido em que as pessoas acreditam que podem decidir o que é certo e o que é errado. Não há para elas um conceito universal de certo ou de errado. O que importa é a sua própria opinião, que se tornou o barómetro do que é certo e do que é errado e isso, por si só, é perigoso. O grande perigo é que poder é querer. Quem quer que seja que tiver mais dinheiro e mais poder vai decidir o que está certo e o que está errado.
CL– Independentemente do valor intrínseco da dignidade humana…
P.J.T. –O segundo aspecto, na verdade, incide sobre quem nós somos e é aqui que se notam os principais contrastes. O pensamento católico tem por base uma visão metafísica e filosófica, uma posição aristotélica forte e optimista, a partir da qual se define o que é pessoa Humana, o que constitui a essência de uma pessoa. Desta perspectiva filosófica partimos para uma abordagem mais prática. Um embrião é uma pessoa. É essa abordagem da Igreja Católica. O valor que assacamos a uma pessoa é igual em dignidade e deve ter direitos iguais, porque somos todos iguais, em termos metafísicos. A visão secular tem, cada vez mais, como ponto de partida o outro extremo, o da experiência ou da vida existencial. A definição do que é uma pessoa tem por base a sua experiência, o seu percurso de vida. Se alguém não possui experiência, como é o caso de um embrião, ou perdeu a capacidade para usufruir da experiência, como alguém que se encontre em coma, é basicamente aceitável considerar que não são pessoas.
CL– Vários países têm aprovado leis que autorizam o aborto e a eutanásia. No caso do exercício da medicina, a quadratura legal nem sempre se coaduna com o enquadramento ético que governa a profissão. É possível conceber o exercício da medicina pura e simplesmente à luz da Lei, sem atender a aspectos éticos e deontológicos?
P.J.T. –Essa é outra questão. A posição católica é a de que uma lei que é injusta, não é de todo lei. Esta é a posição da Igreja Católica. Mas há uma segunda posição, radicada no positivismo legal. Basicamente, o que diz é que não sabemos o que é certo e o que é errado. Há apenas aquilo que é legal e o que é ilegal. Aquilo que o Executivo de um país decidir que é certo e que é errado é consagrado como lei. Isto remove a moralidade e a ética da equação. De um modo geral, são muitos os médicos que nunca são confrontados com este tipo de dilemas. Mas, caso se deparem com uma lei que, em consciência, considerem questionável, é quando a questão se torna problemática. Nestes casos, não há como fugir ao dilema: como é que podem exercer objecção de consciência perante circunstâncias em que a lei autoriza determinadas circunstâncias, mas a sua consciência não?
CL– O que pode a Igreja fazer para enfrentar estes dilemas?
P.J.T. –Na verdade, essa é uma questão sobre a qual tenho pensado muito. A minha resposta pode parecer surpreendente. Acho que aquilo que a Igreja pode fazer é simples. Antes de mais, pode preparar os católicos. Fazer com que os católicos compreendam os ensinamentos da Igreja em relação a estas questões já é um desafio de monta. Se conseguíssemos fazer com que os católicos ficassem a conhecer os ensinamentos da Igreja já seria um grande avanço. Esse é o primeiro passo. Mas, para que esse passo possa ser dado, a espiritualidade é a chave. A espiritualidade é aquilo de que necessitamos para ajudar os católicos a crescer e a cultivar a sua fé.
Marco Carvalho