A cidade-leão
Para um viajante a grande vantagem de cidades como Singapura ou Hong Kong, verdadeiras placas giratórias, é que estas podem proporcionar-lhe o destino mais conveniente, considerando preços ou horários. Para mim, que vinha da Índia, Singapura era a opção natural.
Ilha, cidade-Estado, situada no extremo sul da Península Malaia, Singapura carburava a transacções comerciais e cotações da bolsa. Essa moderna urbe multirracial e multicultural transformara-se num dos mais influentes países asiáticos, combinando trabalho com eficiência, tudo isso à mistura com umas largas doses de repressão governamental. Mantinha-se uma verdadeira encruzilhada para viajantes e, apesar da sua reduzida dimensão, oferecia um vasto leque de locais para visitar, uma imensidade de produtos para adquirir e das melhores escolhas na culinária da região.
No capítulo 220 da sua obra “Peregrinação” Fernão Mendes Pinto diz-nos o seguinte: «E aos três dias da nossa viagem chegámos a uma ilha que se dizia Pulo Pisão, já quase na boca do Estreito de Singapura, onde o piloto, por ser novo naquela carreira, varou enfunado na vela, por cima de um restinga de pedras, como que de todo estivemos perdidos sem nenhum remédio». Esta é, provavelmente, uma das primeiras referências europeias a Singapura.
Singapura, com a sua obsessiva preocupação com a higiene e a ordem pública, podia até ser uma agradável pausa depois de andanças por países menos ortodoxos.
Para sentir o pulso às cidades que se visitam nada melhor do que uma caminhada pelo centro. No caso de Singapura, logo deu para entender que os bairros típicos tinham vindo a transformar-se mais em locais de consumo do que propriamente em repositórios de cultura. Assim, preteri a limpa e reluzente zona de bares e restaurantes de Boat Quay e Clarke Quay, exemplo da excelência de restauro e reordenamento urbano, em favor das mais genuínas e cruas Chinatown, Little India e Arab Street, onde os edifícios de traça chinesa combinavam na perfeição com o tão disseminado indo-português da decoração em estuque e janela com persiana de madeira. Fiquei instalado numa pequena pensão de Little India com uma vasta gama de restaurantes chineses à disposição, se bem que o Pig´s Organs Soup King não fosse opção.
Apesar de uma urbanidade bem patente, os espaços verdes dominam parte considerável das extremidades da ilha principal e das 63 ilhotas que constituem esta cidade-Estado, seja o verde formato reserva natural, Timah Bukit, ou a versão local da Disneyland, vulgo Sentosa.
No século XI, antes do Islão se estabelecer por essas paragens, reza a lenda que um príncipe de Palembang, reino budista de Samatra, visitou a ilha e ao desembarcar viu um animal que julgou ser um leão. Daí a designação: Pura: cidade. Singa: leão. Do século XIII ao XIV, Singapura serviria de sede a um reino budista malaio, conquistado, em 1377, por Majapahit, um hindu de Java que ordenaria o extermínio da população local, lançando sobre a ilha uma maldição. Ainda hoje se acredita ser impossível plantar arroz na cidade-Estado. Após a invasão javanesa, Singapura praticamente desapareceu. Os malaios refugiaram-se em Malaca junto do sultão Iskandar Shah, onde fundaram novo sultanato, passando Singapura a constituir refúgio de piratas que competiam ferozmente entre si pelo controlo dos mares circundantes. Aliás, a insegurança nos Estreitos, mesmo durante a vigência do sultanato de Johor, era de tal ordem que a Coroa Portuguesa encarou seriamente, a partir de 1584, a possibilidade de construir uma fortaleza nas imediações, como nos dá conta Diogo de Couto na sua “Década X”. Esse intuito traduz bem as dificuldades experimentadas pela navegação portuguesa nas ligações com o Golfo do Sião e o Extremo Oriente, sobretudo quando os sultanatos de Johor e de Achém juntavam esforços. Chegou a circular o rumor que os sultões estariam a pensar construir uma fortaleza em Singapura, o que não viria a acontecer, permanecendo Singapura temido covil de piratas policiado continuamente pelas embarcações de Johor. A capacidade de resistência e recuperação demonstradas por este sultanato devia-se ao apoio prestado pelos pescadores e piratas que enxameavam as ilhas e as margens dos Estreitos de Sabang e Singapura, a quem os portugueses chamavam “saletes”.
O felino da lenda (seria provavelmente um tigre) daria origem ao Merlion, mítico peixe com cabeça de leão, actual símbolo da cidade, presente nas notas dos dólares locais e em forma de estátua acessível às máquinas fotográficas dos turistas, a poucos metros da oitocentista ponte de Cavenagh, “interdita à circulação de veículos de grande porte, cavalos e gado bovino”, como especifica uma placa datada de 1910. Mesmo em frente, o majestático Hotel Raffles imortaliza Thomas Stamford Raffles, antigo governador de Bengkulu que, em 1819, decidiu que a pequena aldeia piscatória onde tantas vezes os portugueses transaccionaram mercadorias sem nunca pensar em alicerçar uma cidade (para quê, se tinham Malaca um pouco mais acima!) devia tornar-se num porto de mar de grandes proporções e preponderante importância comercial e militar. Haveria nessa altura em Singapura centena e meia de pessoas, entre chineses e malaios, mas logo em Junho do mesmo ano o lorde inglês contabilizava uma «população de mais de cinco mil almas».
Algumas das mais ilustres figuras dessa Singapura emergente eram portuguesas, na época com uma intrínseca ligação a Macau. A mais conhecida é, sem sombra de dúvida, José de Almeida Carvalho e Silva, nascido em São Pedro de Sul, em 1784, e que viria a falecer em Singapura em 1850. Na qualidade de médico da Marinha, partiu para Macau em princípios do século XIX a bordo de um vaso de guerra português. Nessa cidade esposaria a macaense Rosália Vieira de Sousa, de quem teve numerosa prole, fundando a firma comercial José de Almeida Carvalho & Ca, sendo ainda accionista da Casa de Seguro Mercantil, «companhia com um capital de 430 mil patacas, distribuídas em 86 acções, criada em 1817, fruto da iniciativa do barão de S. José de Porto Alegre e de Januário Agostinho de Almeida». Mas sobre esta interessante figura, e seus descendentes, falaremos em próximas crónicas.
Joaquim Magalhães de Castro