Os Kristang da Península Malaia

Véspera de Mundial

Nos dias que se seguiram à minha frutuosa estada no bairro português de Malaca fui hóspede de Peter Santa Maria, destacado membro da comunidade kristang residente em Kuala Lumpur. Falou-me dos problemas que a preocupavam, entre os quais a ameaça de recrutamento das tríades nas escolas. Estudantes com idades compreendidas entre os quinze e os dezassete anos obrigavam os colegas a pagar protecção, segundo noticiava o China Press. Pertenciam, alegadamente, à seita Wah Kee, activa sobretudo nos distritos de Ampang e Petaling Jaya. Pediam como «imposto de entrada» quarenta ringgit e, posteriormente, dez ringgit por mês. Uma ninharia, se compararmos com os valores exigidos na altura pelos seitosos de Macau. Lá, como aqui, quem recusasse pagar, era sova pela certa.

Outro jornal, o Sin Chew Jit Poh, referia a «tatuagem de mãos» efectuada por vinte e cinco raparigas numa escola secundária, pelos vistos, ritual useiro e vezeiro entre os membros da Seita do Lenço. Aos delinquentes, como é sabido, não lhes falta imaginação. Em Macau tínhamos a Gasosa; na Malásia a Lenço.

A droga constituia outra das pragas recorrentes. Os toxicodependentes malaios chegavam a despender mais de um bilião de ringgits por ano em heroína. Só em Penang, a província mais afectada, o consumo ultrapassava os 324 milhões e o número de viciados rondava os trinta e sete mil. Estranhos números num país que aplica a pena de morte a quem trafique mais de uma dezena de gramas dessa substância psicotrópica.

Noutro registo, dirigentes malaios asseguravam que o Viagra (na época, muito na moda) ainda não chegara ao País, embora fosse fonte de inspiração para jornalistas e caricaturistas. Escrevia Zeno Wan, colunista do suplemento de música e artes do The Sun: «Há dias fui apanhado no elevador por uma das senhoras do departamento de Recursos Humanos com um disco da Marina Xavier debaixo do braço. Pelo olhar diabólico que me lançou, percebi que passou a considerar-me um pervertido, ávido de VCDs menos apropriados, às escondidas e nas horas de ócio, e consumidor de pastilhas de Viagra».

A referida cantora, como o nome indica, é kristang. Enfim, uma espécie de Ana Malhoa da Malásia, senhora dos êxitos “Sha lala, sha lala” e “Do the dut”. Não duvidava da qualidade dos seus atributos físicos, mas preferia outra luso-descendente em terras malaias, Michelle Nunis, vocalista e mentora dos “Soul Intent”.

Só regressaria ao convívio dos meus amigos kristang anos depois, precisamente nas semanas que antecederam o Mundial do Brasil. A Imprensa malaia não queria outra coisa. Cristiano Ronaldo e mais Cristiano Ronaldo. Nos quiosques, bancas de jornais, revistas, ruas, estações de camioneta e de caminho-de-ferro, omnipresente a inconfundível figura da vedeta portuguesa. Os três periódicos em Inglês, ou os demais, em Malaio e Tâmil, trouxeram para as primeiras páginas o melhor futebolista do mundo. Ele era CR7 em sucessivas fintas; CR7 a dar autógrafos; CR7 a beijar a bola, CR7 envergando as camisolas das diferentes equipas onde esteve.

«Nós, malaios, nutrimos uma simpatia muito especial pelo futebol latino. Apreciamos a sua técnica e imaginação», afirmava Nasrid, proprietário de uma pequena pensão da Chinatown.

No suplemento do New Strait Times dedicado ao Mundial algumas das figuras públicas da Malásia confessavam as suas opções. O cantor Amy – um Pedro Abrunhosa malaio (crânio rapado e de óculos escuros) – assumia-se fã do escrete canarinho. No feminino, Prema Lucas, apoiante incondicional da selecção das quinas, chamava a atenção para os «rapazes de calções, sobretudo o Cristiano Ronaldo», «a very cute figure», nas palavras dessa estrela da pop malaia.

Uma caricatura no jornal The Star retratava São Pedro deitado numa nuvem, com o planeta Terra ao fundo, a ser violentamente despertado por um “golo!”, gritado em uníssono por um bando de histéricos terráqueos, lamentando-se: «Oh, não! Não me digam que temos de novo Mundial!?»

A febre futebolística chegara também aos patrões das grandes unidades hoteleiras. Em Georgetown, na ilha de Penang, o Sheraton erguera uma gigantesca bola de futebol frente ao hotel. Ideia de um jovem executivo que parecia estar a resultar. Os transeuntes paravam para apreciar o desmesurado esférico de três metros e setenta e 550 quilos, cenário ideal para fotos de família.

A propósito do panorama futebolístico na Malásia, comentava Peter Santa Maria: «Nem nos lembre disso. Encontramo-nos entre os piores da região». Até a vizinha Indonésia se encontrava num patamar superior. «Pelos vistos, os culpados do nosso insucesso são sempre os treinadores», ironizava o sempre bem-humorado kristang.

Com mau ou bom futebol, o certo e que os malaios iriam ficar presos aos ecrãs a devorarem três jogos por dia – prontos a enfrentar sucessivas noites brancas (diferença horária assim o exigia) para não perderem quaisquer das partidas; prontos a gritarem “golo!” em uníssono (acordando o São Pedro nas nuvens) – prontos a torcerem, quais adeptos ferrenhos, para que o Brasil ou Portugal saíssem vencedores do tão aguardado torneio.

Joaquim Magalhães de Castro

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