Cadinho de culturas
Em 2008 o centro histórico de Malaca seria classificado pela UNESCO como Património da Humanidade, concretizando-se assim um anseio com mais de uma década.
Durante o processo da candidatura, as autoridades locais foram chamando a atenção para «o riquíssimo legado histórico da cidade», aduzindo que tinham sido «pioneiras na introdução do conceito de protecção do património histórico-cultural» na Malásia.
Por sua vez, o delegado da UNESCO, no terreno, corroborara as especificidades dessa cidade «cadinho das culturas baba nonya, malacca chitty, árabe, indiana, portuguesa, holandesa e anglo-malaia», vaticinando boas hipóteses para a candidatura, pois, «embora 180 dos 550 locais listados como património mundial estejam situados na Ásia, nenhum deles é em território malaio».
A almejada distinção não surpreendeu o investigador Rui Loureiro, especialista da história da presença portuguesa na China e Sudeste Asiático, que em Abril de 2007 fora convidado a prestar consultadoria no processo de reabilitação da fortaleza da cidade, com um perímetro de aproximadamente um quilómetro, conhecida no tempo de Afonso de Albuquerque como “A Famosa”. Um trabalho que, a ser concretizado, levaria uns dez anos.
«Fiquei bem impressionado com a equipa encarregue da missão. São todos malaios e estão bem preparados e conscientes da riqueza que têm em mãos», disse-me Loureiro, confidenciando depois que conhecia já a informação que lhe fora disponibilizada, fruto de uma apurada investigação dos manuscritos existentes em Portugal, realçando, por exemplo, «os desenhos e plantas do forte, datadas de várias épocas e de diferentes autorias».
Durante a sua estada, Loureiro presenciaria intensos trabalhos arqueológicos no fosso, em frente à muralha, tendo sido escavados dois dos onze bastiões originais, o que chamou a atenção dos meios de comunicação malaios e da vizinha Singapura. Mas todo o material encontrado – moedas, cerâmica, armamento – era de proveniência holandesa; nenhum artefacto nos remetia para o período português.
«O objectivo final», lembrava o historiador, «é o de reconstruir todos os bastiões o mais fielmente possível, usando, para isso, materiais idênticos aos utilizados na época».
Contrariamente ao seu colega Luís Filipe Thomaz, que em declarações à agência LUSA mostrara espanto pela distinção, alegando que «a cidade de Malaca teve um papel histórico muito relevante no século XVI, mas não tem património arquitectónico porque foi tudo destruído», Loureiro considerava que o critério de atribuição não podia ter apenas em conta aspectos materiais e palpáveis.
«Mais importantes do que as pedras são as pessoas e as suas tradições», afirmou, certamente pensando na comunidade de luso-descendentes malaios, os denominados malaqueiros, elementos identificadores da cidade por excelência.
Resistentes como rochas, os herdeiros dos quarenta guerreiros que acompanharam Afonso de Albuquerque na conquista de Malaca, em 1511, totalizam actualmente uns quantos milhares e encontram-se espalhados pelos quatro cantos da Malásia. Mas é no “Kampung Portugis” – o denominado “Portuguese Settlement” – que a sua face é mais visível. Ali residem, desde 1932, mil e quatrocentos malaqueiros, senhores de familiares apelidos como Lazaro, Fernandes, Teixeira ou Sequeira, que, com o correr dos anos, sofreram ligeiras alterações passando a ser grafadas da seguinte maneira: Lazaroo, Fernandis, Teserah e Sequira.
António Colaço, antigo leitor de português do Instituto Camões em Kuala Lumpur, a propósito, comentou o seguinte: «O representante do Governo tomou a liberdade de anunciar o sucesso da louvável candidatura, mas esqueceu-se de mencionar quem é que lhes sugeriu a ideia».
Afirmava Colaço que nos anos em que vivera em Malaca, sempre com o precioso contributo do professor Shaharil Talib, responsável pelo Departamento de Estudos do Sudeste Asiático da Universidade Malaya, tudo fizera para levar a cidade a candidatar-se a tão prestigiado louvor. Para além da sugestão, Colaço delineara alguns projectos, entre os quais um museu português no centro de Malaca e o reequipamento – com imitações de armaduras, capacetes, astrolábios, cartas de marear, etc. – da réplica da nau de Albuquerque, a Frol de La Mar, onde funcionava o museu da cidade. Por falta de apoios, ambos os objectivos nunca passariam das intenções.
«Portugal, verdade seja dita, nunca manifestou qualquer interesse pela cidade», lamentava o docente.
Outra das iniciativas de António Colaço fora a exposição “Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses”, na Universidade Malaya, no decorrer da qual foram servidos pratos tradicionais cozinhados por pessoas do bairro português de Malaca e onde actuaram os ranchos folclóricos dessa comunidade. «Pela primeira vez», recordava, «o branyo, dança tradicional dos luso-descendentes, viu-se confrontado com o joguete, dança do folclore malaio de comprovada origem portuguesa».
O evento fora apenas o início de um trabalho que era preciso desenvolver de modo a “reabilitar” a imagem dos portugueses na Malásia. Como dizia, «é urgente desmistificar essa ideia de que apenas fomos inimigos do Islão». E, no seu entender, não era difícil provar-lhes o contrário, pois «Portugal e a Malásia têm imensos pontos de união que é preciso revelar e valorizar».
Na época de Fernão Mendes Pinto, esse destemido português, Malaca era o centro do comércio do Extremo Oriente, porventura mais rico que a própria Índia. Mas apesar dessa importância, adquirida e reconhecida, Malaca, como nos diz Mendes Pinto, parecia esquecida «daqueles de quem com razão deverá ser mais lembrada», o que não deixava de ser estranho pois era porto seguro para «muitas nações de gentes estranhas que continuamente recolhe em sua terra para este efeito», inclusive gente inimiga do reino de Achém, a arqui-rival dos portugueses naquelas paragens.
Joaquim Magalhães de Castro