São Paulo Miki e Companheiros
Em 1580 a Cristandade no Japão contava já com 200 mil convertidos. Número espantoso, menos de quarenta anos volvidos da passagem de S. Francisco Xavier pelo Império do Sol Nascente. Xavier por aqui andara entre 1549 e 1551, lançando as sementes da missionação no País do Trono dos Crisântemos. Apesar das resistências dos monges budistas, de alguns sacerdotes das religiões tradicionais japonesas, de alguns potentados, os cristãos nipónicos não pararam de crescer na segunda metade do século XVI. A Companhia de Jesus, a partir de Macau e do Padroado Português do Oriente, como os Franciscanos hispano-filipinos do Patronato de Manila (em conexão com o México espanhol), eram os principais agentes missionários no território. A missionação tinha como maior foco, no início principalmente, Nagasaki. Sim, a mesma cidade onde seriam martirizados 37 mil seres humanos em 1945, vítimas da segunda bomba atómica lançada pelos americanos, para vergar os irredutíveis japoneses.
Mas cerca de três séculos e meio antes, Nagasaki foi palco de violência também, de perseguição, de atrocidades. Pareciam os tempos dos mártires dos primeiros séculos do Cristianismo. Mas eram tempos de mártires, como todos os vinte séculos da fé cristã o tem demonstrado. O sacrifício, o sofrimento, a abnegação, o estoicismo e o humanismo têm sido vias para a santidade. Como naquele dia frio de Fevereiro, 5, do ano da Graça de 1597. Quatro espanhóis, um mexicano, um indiano, todos Franciscanos, missionários, três Jesuítas japoneses e dezassete compatriotas seus, leigos, entre os quais três rapazinhos, todos da ordem Terceira da Penitência de S. Francisco, ao todo portanto, 26 homens, foram executados ali, na mesma cidade mártir da era nuclear. Os 26 Mártires do Japão, em 1597, depois de tantos suplícios, foram executados como aqu’Ele a quem imitavam, crucificados. Com cruzes e pregos, sim, como Ele. Ali, num monte sobranceiro à cidade, para todos verem e zombarem. Ou glorificarem, mas em silêncio. Porque o grande carrasco, o mandante, o daimyō Hideyoshi Toyotomi (1536-1598), regente imperial, não queria nem permitia mais cristãos no Grande Império do Japão.
Até 1638, quando o Japão se fechou ao Ocidente, a Igreja Católica, apesar das intolerâncias e perseguições, dos martírios, não parou de crescer. Nagasaki continuou a ser palco de martírios. Em 1632, a 10 de Setembro, outros convertidos seriam supliciados, 55 desta vez. Depois cairia o longo inverno da Cristandade nipónica, “fora da lei”, sem clérigos, sem ligação ao exterior, à total mercê de desmandos e perseguições (édito de 1635, o Sakkoku, de proibição da fé cristã). Condenada. Ou não… Curiosamente, quando na década de 60 do séc. XIX chegaram os primeiros missionários ao Japão, depois de 1637-38, no princípio, parece-lhe que o Japão era um “deserto” de cristãos. Nem um sinal. Todavia, passados alguns tempos, eis que surgiram japoneses católicos, principalmente em torno de Nagasaki, encriptados por dois séculos terríveis, de silêncios e resistências, sem clero nem sacramentos, nem direcção espiritual. Apenas com fé e esperança. E um legado de sofrimento e diásporas. Muitos macaenses têm nas suas veias o sangue de japoneses cristãos deportados, por exemplo, depois dos levantamentos de 1637, em que foram aqueles (várias centenas) foram forçados a partir para Macau (e Manila).
Um nome cintilou desde sempre entre os cristãos japoneses como uma chama na memória e um estímulo da perseverança: Paulo Miki (em Japonês, パウロ三木), um dos mártires dos 26 Mártires de 1597, beatificado em 1627 e canonizado em 1862. Nascido em família poderosa e rica, 1562, em Tsunokuni, na província de Harima, numa importante família de samurais, foi educado por Jesuítas, aos quais se juntou com vista ao sacerdócio. Ficou famoso como pregador, convertendo muitos compatriotas. Mas foi-lhe movida perseguição, com subsequente captura, às ordens de Hideyoshi, em 1596. Miki foi forçado, juntamente com os seus 25 Companheiros, a caminharem, no Inverno de 1597, de Quioto até Nagasaki, 600 quilómetros, entoando o Te Deum e outros cânticos. A pé até ao seu calvário, a 5 de Fevereiro, ainda pregando, crucificado, o seu último sermão, perdoando piedosamente os verdugos que o executavam. Em torno de si catequistas, sacerdotes, servos, artesãos, velhos, novos, inocentes, todos tinham em comum a fé em Cristo. Paulo tinha 35 anos. Não alcançara o sacerdócio, como alguns referem, apenas pronunciou os seus votos solenes em 1588 e foi estudando conforme as possibilidades. Em 1592 trabalhava com o seu Provincial, Pedro Gomez, dirigindo-se com ele para a comunidade de Osaka.
Afirmou-se sempre um verdadeiro japonês, considerando-se condenado não porque o era mas porque obedecia a Cristo e à Sua doutrina, que ensinava e propagava com afã e zelo, alegria e na sua língua nativa, o Japonês, o que lhe permitia grande poder de conversão, já que era bastante comunicativo e entusiástico. Francisco, carpinteiro, Gabriel, 19 anos, Leo Kinuya, carpinteiro de 28 anos, Diego Kisai, coadjutor Jesuíta, Joaquim Sakakibara, cozinheiro dos Franciscanos em Osaka, Pedro Sukejiro, enviado pelos Jesuítas para ajudar os prisioneiros, Cosme Takeya, de Owari, Ventura, de Miyako, são alguns nomes destes mártires, 26 homens que sofreram cruelmente como Cristo, por apenas O imitarem em vida. Como na morte, ou melhor, a Páscoa da glória de cada um. Paulo Miki, entre eles, fervoroso, indómito na fé, corajoso na entrega, até ao fim, magnânimo, exemplar. Na adversidade, na alegria do martírio. Como os do Grande Martírio de Nagasaki de 1622 (centenas), muitos outros entre 1597 e 1637 também, os 16 Mártires de 1637, os dois padres agostinhos de 1632, ou o martírio de Pedro Kibe Kasui e os seus 187 Companheiros entre 1603 e 1639… Para pensarmos nos dias de hoje, nesta lista de Miki e tantos mais…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa