Conversas de Verão

Opinião

Conversas de Verão

Numa época ávida de novas mensagens, de novas interpretações, susceptíveis de sobrepor-se a verdades antigas, tidas por caducas – cada êxito editorial é saudado como uma nova, definitiva porta aberta, para novos caminhos a percorrer pelo espírito humano. Em que sentido? No sentido de uma melhor compreensão da nossa humanidade.

A História das Ideias não é mais do que a sucessão de novos contributos, acompanhados da esperança, sempre infundada afinal, de que AGORA É QUE SE VAI EXPLICAR TUDO!

Neste sentido preciso, Yuval Noah Harari entrou na galeria dos indispensáveis.

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Não se pode dizer que o Facebook seja o lugar mais adequado para uma longa e séria conversa, muito menos para o intercâmbio de ideias profundas, sobre tópicos que exigem tempo e espaço adequados. As mensagens são curtas, as interrupções a despropósito são numerosas, as manifestações de meros provocadores infelizmente frequentes… e a contenção verbal nem sempre observada…

O desrespeito do interlocutor é tão frequente que não merece sequer mais referências no contexto deste comentário.

Yuval Noah Harari, o novo guru do pensamento universal, deu-me esse pretexto. Quer dizer, o pretexto para um princípio de conversa que tinha que continuar noutro lugar, em forma ou não de conversa. Ou melhor, o pretexto foi dado por antiga colega que leu um artigo sobre o académico judeu e suas teses e decidiu fazer a respectiva publicidade no Facebook, no que está inteiramente no seu direito.

O jovem professor de História da Universidade Hebraica de Jerusalém tem, como se sabe, conhecido um assinalável êxito editorial com a trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século XXI”.

Pretende ele abrir pistas para uma nova racionalidade sobre o passado e o futuro da espécie humana. Nem mais nem menos. O jovem Yuval Harari é ambicioso e quem não estiver na sua linha de descoberta é automaticamente apodado de preconceituoso.

Não li ainda a trilogia de Yuval Noah Harari. Confesso esse pecado de óbvio atraso intelectual. Mas a superficialidade dos parágrafos que abaixo reproduzo (e que a minha interlocutora do Facebook precisamente salientou) deixou-me atónito, embasbacado, vindo dum intelectual com tantas credenciais…

O que é uma religião?

Transcrevo o que Harari refere como sendo a religião, as religiões, para tecer depois alguns comentários meus.

“O que é uma religião, se não um grande jogo de realidade virtual desempenhado por milhões de pessoas juntas? Religiões como o Islão e o Cristianismo inventam leis imaginárias, como ‘não comer carne de porco’, ‘repetir as mesmas preces um número determinado de vezes por dia’, e assim por diante. Essas leis existem apenas na imaginação humana”.

Quem garante a Harari que não existem senão na imaginação humana? Recebeu o professor alguma mensagem cósmica nesse sentido? Porque, no fundo, a sua capacidade de negar é tão soberana como o nosso direito de ripostar, de contrapor! As religiões, todas elas, têm uma história, uma coerência, um tempo e um espaço onde os conceitos surgem e se desenvolvem.

Tiveram tais conceitos autor ou autores, e a demonstração de que são erróneos é mais útil e mais explicativa se se puder discernir o modo como apareceram, do que com recurso à vaga menção de que resultam da pura imaginação humana!

Continuo a citar Harari: “Nenhuma lei natural exige a repetição de fórmulas mágicas ou a ingestão de porco. Muçulmanos e cristãos atravessam a vida tentando ganhar pontos em seu jogo de realidade virtual favorito. Se você reza todos os dias, você obtém pontos. Se você esqueceu de orar, você perde pontos. Se, no final da sua vida, você ganhar pontos suficientes, depois de morrer, você vai ao próximo nível do jogo (também conhecido como o paraíso)”.

O meu comentário: mas, mais uma vez, quem garante ao académico que só as leis naturais se nos impõem? É o seu ateísmo… científico? Porque, como dizia alguém, há tanto DOGMA no ateísmo mais absoluto, como numa Fé que nunca tem dúvidas!

O que é natural (aqui a expressão será mais justa) é que o espírito humano vacile, se interrogue, coloque questões, tenha ou não tenha respostas… e essa é A NOSSA LIBERDADE!

Ainda extraído da longa citação acima: “Como as religiões nos mostram, a realidade virtual não precisa ser encerrada dentro de uma caixa isolada. Em vez disso, ele pode se sobrepor à realidade física. No passado, isso foi feito com a imaginação humana e com livros sagrados, e no século XXI pode ser feito com smartphones”.

Não sei se Harari se enganou ou fez de propósito, quanto a esta confusão de planos, mas, francamente, colocar ao mesmo nível conceitos que carecem de ser contextualizados (rezar de uma certa maneira, não comer carne de porco) é, no mínimo, de muito duvidoso rigor intelectual!

E o máximo do embaraço é o equipar os livros sagrados ao “smartphone”, nem que seja como meros media daquilo a que chama a realidade virtual. O “smartphone” é um meio neutro, onde se coloca o conteúdo que se quiser. Os livros sagrados são, para além de “revelações divinas” segundo os crentes de cada religião, depósitos de uma velhíssima sabedoria humana, estudada por muitas disciplinas a que o professor Harari não será estranho.

Produto talvez da sua juventude, tudo ou quase tudo cabe para o universitário em causa numa espécie de “playstation” – eu ia dizer gigante… mas hoje é quase tudo miniaturizado!

E onde está Deus?

Sim, e onde está Deus nisto tudo? Começando pelo começo, transcrevo o primeiro parágrafo de “Sapiens”: “Cerca de catorze bilhões de anos atrás, matéria, energia, tempo e espaço surgiram no que é conhecido como o Big Bang. A história dessas características fundamentais do nosso universo é chamada Física”.

Deus é despedido sem justa causa deste início remoto da aventura cósmica. E portanto da aventura humana. Quem O despede assim? Harari, entre muitíssimos outros. Fica por isso o problema resolvido, a da Origem de Tudo? Para mim, para nós, não fica!

Continuo a citar: “Aproximadamente 300.000 anos após o seu aparecimento, matéria e energia começaram a coalescer em estruturas complexas, chamadas átomos, que então se combinaram em moléculas. A história de átomos, moléculas e suas interações é chamado Química”.

E continuo a perguntar: como surge esse dinamismo, essa coerência de interacções? A matéria e a energia criaram-se a si próprias? E têm essas interacções qualquer finalidade, isto é, que não seja a de perpetuarem forças que não se podem justificar a si próprias, porque não está no seu papel justificar coisa nenhuma?

Claro que para os cientistas esta forma de colocar questões é primitiva, anti-científica! Mas quem os autorizou a pensar que a minha “ignorância” não visa afinal um patamar de conhecimento que a sua Ciência não pode dar?

E aqui é que está o busílis! Se a Religião, as religiões, não têm o monopólio da verdade, na convicção de muitos cientistas, porque hão-de ter tal pretensão as ciências, tão insipientes ainda perante um Universo que cresce, que se expande infinitamente?

Não pretenderam ser as linhas acima nenhum comentário geral à obra do professor Harari. Seria tolice minha pretendê-lo. Mas tais linhas visaram exprimir a minha rebeldia pelas ditaduras intelectuais sucessivas dos novos gurus….

Carlos Frota

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