Opinião

Uma mentira mil vezes repetida

Um dos maiores paradoxos da idade que nos é contemporânea é o que encontra expoente na ascensão da era da desinformação. Nunca, como agora, os conteúdos e a informação foram tão facilmente acessíveis, mas o resultado da “overdose” de informação a que estamos sujeitos não é a lucidez alvitrada mas – e pelo contrário – um manancial de descrença e de cepticismo que tende a alienar as conquistas de uma era que se prefigurava, a priori, como uma época de abertura e de clareza.

A chegada à Casa Branca de Donald Trump colocou na ordem do dia a própria epistemologia do conceito de verdade. As imprecações do Chefe de Estado norte-americano revestem-se de finalidades políticas e parecem visar objectivos bem definidos, mas não deixam, em parte, de colocar o dedo na ferida no toca à fiabilidade da informação e do aparentemente infinito repositório de conteúdos cujo acesso foi facilitado pela popularização de meios tecnológicos como a Internet e o telemóvel.

Trata-se, no fundo, de procurar perceber se a verdade e o rigor são compatíveis com o livre arbítrio e a forma como cada um se relaciona com o mundo ou, se pelo contrário, o futuro será de um relativismo absoluto, com cada um a procurar não o conhecimento pelo que ele é, mas pela utilidade com que se coaduna às suas convicções.

É expectável que a mudança de paradigma se traduza por uma ruptura moral e civilizacional de tal modo ampla que a sociedade, tal como a conhecemos actualmente, deixe de existir. O que o futuro nos trará – um amanhã de certezas esbatidas e intercambiáveis, de convicções pessoais no lugar de conceitos universais – é ainda uma incógnita, mas no excesso de informação parece estar, cada vez mais, a origem do colapso da ordem moral para a qual fomos preparados.

O Brexit, a eleição de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro no Brasil não são, ao contrário do que se possa equacionar, o início de um processo de desconstrução do mundo tal qual o conhecemos, até porque esse processo há muito que está em andamento. Exprime-se em aspectos tão simples e concretos como a falta de capacidade crítica para com a percepção do real que nos é servida, muitas vezes em relação a aspectos aparentemente irrelevantes, como seja algo tão simples como a origem da “nossa” Casa Garden.

A construção da mansão, paredes meia com o terreno que acolhe os chamados “penedos de Camões”, está ainda envolta em mistério, mas na versão mais amplamente difundida – a da exposta no portal electrónico do Património Mundial de Macau – a casa terá sido edificada em 1770, sendo “originalmente a casa de um rico mercador português, Manuel Pereira”. Uma versão aparentemente inócua, não fosse Pereira ter treze anos no ano em que vivenda foi erguida.

Repetida em centenas de outras páginas, em várias línguas pela Internet fora, a mentira ganhou já foros de verdade. Se assim é com o passado, o que podemos nós esperar do futuro?

Marco Carvalho

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