Olhar com a alma

A Vida Contemplativa

Pode ser uma realidade da Graça, ou da inteligência, vivida pelo crente como um dom de Deus. Pode ser, por isso, o conhecimento do Pai, das profundezas de Deus, através do Espírito Santo. Uma comunhão trinitária, de Deus vivo por Cristo no Espírito Santo, a contemplação é a abertura do crente à revelação, estribado na fé, na esperança e no amor. A projecção do homem para Deus, no silêncio, na Eucaristia, na Palavra de Deus, nos sacramentos, na humilde adoração, na virtude da piedade, fonte interior de paz. A vida contemplativa é assim uma vida norteada pela contemplação, adaptada a esta, que a facilita.

Todos os cristãos devem tratar de conhecer e amar a Deus, referia São João Paulo II, sendo vida contemplativa, nesse sentido, sinónimo de cristão. Alguns só lhe dedicam parte da sua vida, ou por falta de ou por outras obrigações, outros tentam combiná-la com a vida activa, com ministérios activos e caritativos, enquanto que outros a levam à perfeição suprema, à radicalidade da renúncia a todas as ocupações que a possam limitar ou diminuir, a superar todas as limitações da natureza humana. Quase sempre consideramos apenas esta como vida contemplativa, própria dos monges e monjas de clausura, dos ascetas, eremitas e místicos nos “desertos”, anacoretas… Mas como vimos atrás, a dimensão contemplativa existe também em harmonia ou a par de outras formas de vida, pois é o “complacente e amoroso olhar da alma para a verdade divina”, apreendida pela inteligência e iluminada pela Graça.

O acto da contemplação é um dos que rende maior honra e louvor a Deus, é a mais elevada forma de culto humano, como dizia São Bernardo de Claraval, pois é na essência um acto de adoração e de total entrega de todo o ser do homem, a prostração da alma perante Deus, perdida no amor admiração da beleza divina, como referia aquele místico Doutor Melífluo, na sua teologia de sabor a mel. O culto jubiloso do coração, da mente e da alma, em «espírito e em verdade (Jo., 4,23)», a contemplação, objecto e fulcro da vida contemplativa, é a paz, a alegria, felicidade para os que a vivem.

Apesar das debilidades dos sentidos corporais e instabilidade natural da mente e coração da maior parte dos seres humanos, a par das exigências e desafios da vida, que impedem sequer que se fixe a nossa atenção muito tempo num objecto, apesar destas limitações quanto ao material, e ainda mais do sobrenatural, mesmo assim existem seres contemplativos ou que se consagram à contemplação, de forma única ou em harmonia com uma vida activa e ministerial. Ou então só às vezes…

Na Igreja Católica, nas hagiografias como na história, são inúmeros aqueles que se consagraram à virtude da contemplação, alguns na maior radicalidade, como São Bruno e os seus Cartuxos, o citado São Bernardo, São Bento e Santa Escolástica e as suas famílias monacais, ditas Beneditinas, ou Camaldulenses, como poderíamos falar dos eremitas e dos anacoretas do monaquismo primitivo, do Egipto à Ásia Menor, passando pelo Levante, irradiando depois para o Ocidente. E tantos depois com vida contemplativa e vida activa em síntese harmoniosa, como São Francisco de Assis, São Domingos de Gusmão e as suas ordens mendicantes, além dos ramos femininos delas e de outras ordens deste grupo, como os Agostinhos e Carmelitas, nas suas observâncias, ramificações, dissidências e renovos, até podermos falar nos Clérigos Regulares, como os Jesuítas de São Inácio (vejam-se os seus Exercícios Espirituais…), além do clero secular, dos sacerdotes do Hábito de São Pedro, como os cronistas antigos os denominavam. São Josemaría Escrivá, nos nossos tempos recentes, é um paradigmático exemplo da vida contemplativa, a par da vida activa, estimulando-a, enquanto radical de Deus, na vida familiar e laical, como poucos terão dinamizado. Neste caso, demonstra-se a possibilidade da vida contemplativa entre aqueles que dedicam mais tempo na sua vida à subsistência e ao bem-estar temporal, através da santificação das suas vidas, muito através dos dons da Graça e do intelecto pela via da contemplação.

É difícil sim, alcançar essa união mística com Deus, abandonando tudo mais ou parte das actividades. Retirar-se para se desenvolver uma vida totalmente consagrada à contemplação será ainda um desafio maior, mais difícil, mas já se viu que não impossível. Muitos na história da Igreja têm seguido de forma estrita a Jesus Cristo, através da vida contemplativa, total ou parcial. Formaram “comunidades de Vida”, consagrada, claro, como os religiosos (monaquismo, ordens mendicantes, clero regular enfim…), mas nas “comunidades de Aliança”, presentes na vida secular, no mundo. As ordens monásticas ao longo dos séculos tornaram-se pois como o porto seguro da contemplação, onde esta, na Igreja Católica, melhor se define e desenvolve, sem os obstáculos exteriores. Os votos de pobreza, obediência e castidade são os meios para essa vida em contemplação, contra os males que devastam o mundo secular, como a sensualidade, o orgulho ou a cobiça, como lembrava São João (1 Jo., 2,16).

A pobreza liberta das preocupações e problemas de posse, propriedade, administração de bens temporais, dos perigos morais da riqueza, da cobiça ou da ambição; a castidade liberta o contemplativo dos grilhões da vida matrimonial e do jugo da sensualidade, da líbido, dos problemas do coração e da mente, como referiam os Padres da Igreja, purificando-o no coração e na visão de Deus, como recorda São Mateus (Mt., 5,8); a obediência: sem ela é impossível viver em comunidade, libertando da ansiedade. A estabilidade é a natureza do contemplativo, o seu quotidiano e cumprimento dos deveres, livrando-o das inconstâncias do século. E o silêncio? É o elemento da contemplação, por excelência, da via aberta dos colóquios com Deus, além de que conversar com Ele e ao mesmo tempo com os outros não é possível. O silêncio é um imperativo da disciplina também, alienando desejos, pensamentos ou conversas vãs, fantasias. A casa do silêncio é a solidão, que o defende também e alicerça, ajudando-o na compreensão da linguagem única de Deus (Mt., 6). No claustro ou na cela, dos mosteiros ou conventos, na interioridade do capuz, do invólucro do hábito, o instinto egoísta mortifica-se e contemplação reluz. Austeridade, sobriedade e jejum ajudam também na vida contemplativa, a par da leitura como também do trabalho. A vida contemplativa é pois um desafio, para todos e em todos os tempos e lugares.

Em Macau também há vida contemplativa, na comunidade de monjas trapistas, na Penha. Mas não só…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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